Aos poucos, os tapumes vão cedendo lugar em Paris à visão panorâmica de monumentos recauchutados para a Olimpíada, que começa em 26 de julho, entre eles a onipresente Torre Eiffel, que, de tinta nova, recobrou o brilho original. Um dos mais visitados cartões-postais da cidade, porém, seguirá de portas fechadas durante os Jogos — a Notre-Dame, catedral que orna lindamente com o Rio Sena e ajuda a contar eletrizantes capítulos da história. O belo exemplar gótico, posto de pé entre os séculos XII e XIV, resistiu a vandalismos, guerras e à Revolução Francesa, quando os insurgentes converteram o potente símbolo da cristandade em Templo da Razão, derretendo seus icônicos sinos, aqueles vigiados de perto por Quasímodo, o inesquecível corcunda da obra de Victor Hugo. Em 2019, o resiliente prédio, que passava por uma reforma, foi devastado por um incêndio, provavelmente causado por um curto-circuito ou uma guimba de cigarro. A ideia inicial era reconstruí-lo até a temporada olímpica, mas, entre atrasos e polêmicas, a reabertura ficou para dezembro deste ano.
Não significa que não se poderá desfrutar a igreja, seja apreciando sua imperdível fachada, nos últimos retoques, seja fazendo um passeio por suas obras em uma exposição que exibe preciosidades resgatadas em meio ao fogo. Abrigada no museu Mobilier National, a mostra Grands Décors Restaurés de Notre-Dame tem entre seus destaques treze grandes pinturas que compõem a série Mayos, parte do lote que a guilda de ourives parisienses ofereceu à catedral a partir do século XVII. Restauradas, as peças serão postas nas capelas laterais, preservando o plano de deixar a nave sem nenhuma interferência. Uma série de gigantescas tapeçarias, delicadamente tecidas na Bélgica e na França, também está no rol dos tesouros da coleção. Em 1637, Luís XIII as teria encomendado depois de pedir à Virgem Maria que reinstaurasse a paz no reino e lhe abençoasse com um herdeiro (que viria a ser ninguém menos que o Rei Sol). Atendido, ele pediu que os tapetes girassem em torno da trajetória da santa e prometeu de quebra um altar novo em folha para a Notre-Dame.
Trazer essas e tantas outras peças de volta à vida consumiu dois anos de trabalho envolvendo cinquenta profissionais, que se dedicaram ao serviço em local secreto, para manter a segurança da missão. Muitas estruturas que sucumbiram — o altar de Luís XIII, o batistério e o púlpito — também estão sendo refeitas, tendo como referência detalhados desenhos e fotos de como eram, esses também iluminados pela exposição. “Da tragédia surgiu uma oportunidade para pesquisar e entender melhor o acervo que decorava e mobiliava o templo”, disse Emmanuel Pénicaut, diretor das coleções do Mobilier National.
No esforço de contar a saga de artesãos, engenheiros e arquitetos na recuperação da igreja, uma outra exposição, na Cité de L’Architecture, no Trocadéro, leva o observador a mergulhar em processos e técnicas de construção do presente e do passado, um percurso repleto de surpresas. “O incêndio revelou que a nave da catedral foi reforçada com numerosas armações de ferro até então desconhecidas, fazendo da Notre-Dame pioneira no século XII. A toda hora descobrimos algo novo”, conta Maxime L’Héritier, professor de história medieval da Sorbonne, em Paris.
O visitante é ainda brindado com estátuas dos doze apóstolos e dos quatro evangelistas que o arquiteto Eugène Viollet-le-Duc projetou e agrupou em torno do pináculo enquanto trabalhava em uma radical reforma da igreja, em 1860. A agulha que coroa o edifício tombou durante o incêndio numa cena de horror (boa notícia: uma novinha já está de volta ao lugar, com o galo no topo e tudo) — e o conjunto de estátuas só se salvou porque estava em restauro à época. Empregando um recurso cada vez mais utilizado em museus, a exposição oferece no final uma trilha virtual ultrarrealista pela Notre-Dame antes e após o fogo, explorando das capelas ao telhado e simulando a ação do fogo e da água.
Desde o início, a reconstrução da catedral, erguida onde ficava o templo pagão de Júpiter quando os romanos davam as cartas ali, coleciona polêmicas. Elas são atiçadas pelo duelo entre quem quer ver tudo como era e os que gostariam de dar novos ares ao prédio, turma que vem perdendo até agora. Já se propôs colocar lado a lado pinturas contemporâneas e antigas, produzir efeitos de iluminação na nave e instalar bancos com rodinhas — tudo derrubado pela ala em prol de recriar ipsis litteris o passado. A contenda atual gravita em torno da ideia de escolher um artista para refazer os vitrais sob um olhar moderno, defendida pela própria igreja e pelo presidente Emmanuel Macron. “Querem disneyficar a catedral”, queixam-se os irados opositores. Por ora, a corrente a favor da mudança está vencendo, com um edital em andamento. Certo mesmo é a abertura de um museu bem ao lado da catedral, previsto para 2026, exibindo seus tesouros hoje longe do olhar do público por falta de espaço. E assim a Notre-Dame vai escrevendo mais um capítulo de sua admirável jornada.
Publicado em VEJA de 28 de junho de 2024, edição nº 2899