Seguindo um movimento comum aos países sul-americanos saídos de ditaduras na segunda metade do século XX, o Chile pós-democratização atravessou seguidas eleições rejeitando aventuras políticas e alternando no poder partidos de tendência moderada. Até que, em 2019, uma combinação de desemprego em alta com intensificação das vastas desigualdades sociais, revolta de setores da população indígena e escândalos financeiros fez o caldeirão explodir: manifestações tomaram as ruas, a polícia reagiu com violência e os eleitores, cansados da mesmice, implodiram os partidos tradicionais. Resultado: no segundo turno da votação para presidente, no domingo 19, enfrentam-se figuras situadas nas pontas do espectro, o ultraconservador José Antonio Kast, 55 anos, e o esquerdista Gabriel Boric, 35. Como é comum em uma nação solidamente fincada na democracia e, em geral, avessa a radicalismos, a oratória inflamada dos dois candidatos no primeiro turno retrocedeu, nas últimas semanas, a promessas de mudanças mais pé no chão e palatáveis aos eleitores do meio. “A maioria dos chilenos se considera de centro e é favorável a mudanças graduais”, afirma Kenneth Bunker, diretor do instituto de pesquisas Tresquintos.
O dilema pode ser medido pela enorme rejeição a Kast, que teve 28% dos votos no primeiro turno, e Boric, que levou 26%: quase metade dos chilenos que compareceram às urnas (e já foram pouquíssimos: só 47% do total) não escolheu nenhum dos dois. No dia seguinte à votação, tanto Kast quanto Boric já flertavam com a célebre tática “paz e amor”. O direitista Kast, admirador de Augusto Pinochet (seu irmão, Miguel, foi ministro do Trabalho na ditadura) e de Jair Bolsonaro, apoiador do policiamento duro e da rejeição dos imigrantes venezuelanos — cogita cavar um fosso na fronteira —, antiaborto e anticasamento gay (que acabou de ser aprovado no país), entrou no segundo turno limando as referências ao ditador e declarando que não vai apelar ao Estado de exceção para reprimir manifestações, que considera “atos terroristas”. Boric, por sua vez, ex-líder estudantil que se juntou aos protestos de rua, depois de pregar o acolhimento dos vizinhos que fogem da miséria na Venezuela, agora promete remover seus acampamentos em vias públicas e repatriar os ilegais.
Entre as correções de rota na economia, Kast, adepto do lema “Menos imposto, mais governo”, que falava em privatizar todas as estatais, voltou atrás em relação à poderosa Codelco, de mineração de cobre, onde planeja instituir “metas de eficiência”. Também não vai mais extinguir o Ministério da Mulher — admite que a pasta “é uma conquista”. Boric, lutando contra a pecha de comunista, procura embrulhar sua plataforma no tecido da social-democracia ao molde europeu, ecológica e feminista. Trocou a promessa de “enterrar o Estado neoliberal pinochetista” pelo mantra “Consolidação fiscal, recuperação de empregos e modernização do Estado” e garante que uma de suas principais propostas, a Pensão Universal Garantida, não vai furar o Orçamento. Chamou ainda para compor sua equipe o economista Eduardo Engel, conhecido pela bandeira anticorrupção. “No primeiro turno, a diferença entre eles foi de somente 150 000 eleitores. A tendência é que agora haja uma disputa voto a voto”, diz Claudia Heiss, cientista política da Universidade do Chile.
As projeções seguem emboladas — as últimas pesquisas dão 53% a Boric e 45% a Kast. E a troca de acusações só faz se intensificar. “Ele não mudou seu jeito de pensar, continua sendo o representante legal do Partido Comunista no Chile”, diz o direitista sobre o adversário. Este, por seu lado, vem condenando a campanha “baseada em mentiras e na incitação ao medo” do rival — no que tem sido ajudado pela revelação de que seu pai, alemão que chegou ao Chile em 1950, foi membro do partido nazista e tenente do Exército de Adolf Hitler. Não faltam reviravoltas na eleição mais imprevisível da história recente do Chile.
Publicado em VEJA de 22 de dezembro de 2021, edição nº 2769