Os semicondutores, materiais que conduzem correntes elétricas na forma de microchips, são a espinha dorsal do mundo interconectado. Presentes em todos os recantos do universo eletrônico no papel de cérebro de máquinas que vão de simples calculadoras a automóveis, aparelhos de TV, smartphones, videogames, passando pelos equipamentos de exploração espacial, eles se tornaram cruciais para a cadeia produtiva mundial — e, desde a pandemia, também uma enorme dor de cabeça global. A elevada procura após quase um ano de demanda reprimida, período em que as esteiras seguiram apenas parcialmente operantes, e a concentração da fabricação em alguns poucos países colocaram os semicondutores no centro de um ringue em que setores diversos se estapeiam para ver quem fica com a produção de indústrias que já operam com capacidade máxima. Indo além das leis de mercado, a briga por chips transbordou para uma guerra geopolítica: diante da extrema dependência do fornecimento asiático, ainda mais evidente agora, Estados Unidos e Europa estão distribuindo milhões em incentivos para construir fábricas de chips em seu território.
Depois de explodir em 2021, com crescimento de 26% e faturamento de 550 bilhões de dólares, a venda mundial de chips deve continuar em franca ebulição, segundo as projeções. A maior produtora é, de longe, Taiwan — lá, uma única empresa, a TSMC, fornece quase metade de todos os semicondutores do planeta. Os chips da ilha são tão essenciais para o mundo que parte da escassez atual se deve a duas secas sem precedentes, que provocaram uma redução forçada no fornecimento taiwanês nessa indústria que é movida a enormes volumes de água. Juntas, Taiwan e China respondem por 70% dos chips que o mundo consome — e a aberta intenção de Pequim de engolir a ilha, hoje um país reconhecido por poucos e amparado quase unicamente pelos Estados Unidos, faz o Ocidente tremer. “A escassez atual expôs os riscos geopolíticos da dependência tecnológica”, alerta Raluca Csernatoni, pesquisadora do instituto Carnegie Europe, sediado em Bruxelas.
Os Estados Unidos continuam a ser o motor da pesquisa e desenvolvimento de chips, uma atividade dominada por empresas do Vale do Silício, como Nvidia e Qualcomm, e cada vez mais requisitada diante da acelerada especialização dos semicondutores. Em relatório recém-publicado, a Casa Branca destacou as vantagens de estar à frente no design do produto, mas a posição perde força quando se constata que os chips que os americanos criam são, quase todos, feitos na Ásia. Devolver para os Estados Unidos a cadeia produtiva de diversos itens considerados estratégicos era uma bandeira de Donald Trump, que para isso impôs tarifas extras e termos duros para o comércio, principalmente com a China. A política não teve muito resultado — até a pandemia chegar e estabelecer a desordem nas engrenagens do fornecimento, levando as empresas a repensar sua localização.
O governo de Joe Biden está empenhado agora em passar no Congresso uma lei com o objetivo de reservar um aporte bilionário para impulsionar a proliferação de fábricas de chip em solo americano, uma tentativa de escapar das garras do dragão chinês. Enquanto a bolada não vem, injeções de verbas estaduais começam a mudar a paisagem. A Micron Technology, sediada no estado de Idaho, anunciou recentemente que vai investir 150 bilhões de dólares nos próximos dez anos em pesquisa, desenvolvimento e fabricação dos tão disputados chips no seu local de origem. Também a sul-coreana Samsung reservou 17 bilhões de dólares para erguer uma fábrica de semicondutores no Texas.
Igualmente preocupada em garantir pronto acesso aos componentes do mundo digital, a União Europeia formula um projeto de lei que mira alavancar de 5% para 20% seu quinhão no mercado de semicondutores até o fim da década. Os maiores investimentos são na região de Dresden, na Saxônia, localizada na antiga Alemanha Oriental — a região, apelidada de “Vale do Silício saxão”, fornece hoje um de cada três chips feitos na Europa e tem entre seus compradores gigantes como Apple, Samsung e Amazon. Os semicondutores floresceram ali nos anos 1990, aproveitando a oferta de especialistas em microeletrônica treinados pela Alemanha comunista e desempregados após a queda do Muro de Berlim. A ideia agora é abrir a Saxônia a imigrantes qualificados e aumentar assim em quase 50% a força de trabalho dedicada aos chips. Na contramão global, o mercado brasileiro perdeu sua única fábrica de chips (também a única do Hemisfério Sul) em junho, quando o Ministério da Economia fechou o Centro de Excelência em Tecnologia Eletrônica Avançada, estatal criada em 2008. De fato, a empreitada estava dando prejuízo aos cofres públicos. “Alcançar uma posição de força na cadeia de produção dos semicondutores leva tempo e é tarefa difícil para quem está chegando”, afirma a especialista Raluca Csernatoni. Pelo visto, vamos continuar produzindo apenas commodities no grande jogo global. Quase nada de tecnologia.
Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2022, edição nº 2772