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Com a renda em queda e a miséria aumentando, os argentinos vão às ruas

Eles tentam avisar que a paciência para esperar melhores dias está acabando

Por Ernesto Neves 13 out 2024, 08h00

Quando chegou à Casa Rosada, em dezembro do ano passado, sustentado por 55% dos votos nas eleições, Javier Milei avisou os argentinos que a situação pioraria antes de melhorar. Dentro de seu inédito e mirabolante projeto “anarcocapitalista” para dar jeito na Argentina, a fatia que anulava subsídios e benefícios e enxugava drasticamente a máquina pública dava como certa uma dramática cota de sofrimento por parte da população. A questão era: até onde ela aguentaria? Faltando pouco para o governo completar um ano, a paciência, ao que parece, começa a acabar. Nos últimos dias, as ruas de Buenos Aires foram tomadas por cerca de 300 000 manifestantes, em protestos puxados por estudantes, indignados com o veto presidencial a uma lei que aumentava o orçamento das universidades, e engrossados por funcionários de estatais que Milei planeja privatizar, aposentados e trabalhadores liberais, evidenciando o fastio da classe média com o aperto de cintos que lhe foi imposto.

As pesquisas refletem o mau humor geral. Entre maio e setembro, a avaliação positiva do presidente despencou 12 pontos percentuais, recuando para 42%, enquanto a reprovação disparava 22 pontos, alcançando 46%. Diante de 5 000 apoiadores reunidos em um parque da capital, convocados para um ato do partido governista, o La Libertad Avanza, o presidente investiu, com a costumeira virulência, contra a “casta putrefata” de empresários, políticos, líderes trabalhistas e jornalistas que se opõem ao seu pacote liberalizante. “São ratos miseráveis. São degenerados fiscais, delinquentes, traidores”, fustigou.

Em paralelo ao veto do aporte financeiro para as instituições de ensino, o governo angariou antipatias ao acelerar o processo de desestatização da Aerolíneas Argentinas, poderoso símbolo nacional criado por Juan Domingo Perón em 1950. A empresa aérea, privatizada por Carlos Menem em 1990 e reestatizada por Cristina Kirchner, amarga prejuízo anual de 200 milhões de dólares, coberto pelo Tesouro Nacional, mas falar em vendê-la mexe com os brios argentinos. “Milei vem empreendendo reformas inevitáveis, mas a população se pergunta até quando vai durar o aperto”, diz o economista Ruy Santacruz, da Universidade Federal Fluminense.

PROTESTOS - Manifestação contra a privatização: resistência ao “anarcocapitalismo”
PROTESTOS – Manifestação contra a privatização: resistência ao “anarcocapitalismo” (Nicolas Suarez/NurPhoto/Getty Images)

Ao tomar posse, Milei prometeu desfazer o caos financeiro herdado da gestão anterior, do peronista Alberto Fernández. Com esse objetivo, lançou um conjunto de medidas drásticas, com cortes nas remessas de dinheiro para as províncias, demissão planejada de 70 000 funcionários públicos, desvalorização de 50% do peso, extinção do tabelamento de preços de produtos e a eliminação de subsídios em serviços como a distribuição de eletricidade e gás. Parte das medidas para reverter a barafunda deixada pelos peronistas foi baixada nos primeiros dias do novo governo, via decreto, com efeitos imediatos. O déficit público foi contido, melhorando a credibilidade do país nos mercados internacionais, e a inflação, depois de saltar impressionantes 25% somente em dezembro de 2023, vem cedendo gradativamente e cravou alta de 4% em setembro — ainda elevadíssima (para efeito de comparação, o Banco Central projeta 4,3% para todo o ano de 2024 no Brasil), mas muito mais controlada. O efeito colateral do remédio amargo foi o encolhimento geral da renda, ou seja: a economia saiu da UTI, mas, no bolso, os argentinos vão de mal a pior.

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A taxa de pobreza medida pelo Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec) alcançou 53% em setembro, salto de 11 pontos percentuais em relação aos meses finais do governo peronista, quando já era insustentável. Apenas neste ano, 3,4 milhões de argentinos mergulharam na miséria, formando o maior contingente de desvalidos em mais de duas décadas. O PIB deve encerrar 2024 com contração de quase 4%, causada pelo colapso no gasto dos consumidores, queda da atividade industrial e duro aperto da construção civil. “Milei prometeu que a economia voltaria a crescer no segundo semestre, mas o sentimento é de que tudo segue piorando”, diz Cristian Buttié, do instituto de pesquisas de opinião CB Consultora.

Tentando reverter o alto grau de insatisfação, nos últimos dias a Casa Rosada vem insistindo no discurso de que a privação está chegando ao fim, acenando com uma nova estimativa de que, em 2025, a economia cresça 5% e a inflação não passe dos 18%. Os números otimistas foram recebidos com boa dose de desconfiança — segundo economistas, para a situação melhorar o governo ainda precisa desarmar distorções graves, entre elas o controle cambial, que mantém o peso artificialmente valorizado. Resta ver se os argentinos, exauridos por anos de declínio, aguentarão o tranco.

Publicado em VEJA de 11 de outubro de 2024, edição nº 2914

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