Sem celulares e apetrechos tecnológicos, deixados do lado de fora para evitar vazamentos, congressistas se reuniram a portas fechadas em uma sala do Comitê Nacional Democrata, em Washington, na terça-feira, 9, para discutir uma questão urgente: se o presidente Joe Biden deve ou não continuar na corrida pela reeleição após a desastrosa participação no debate com o republicano Donald Trump, assistido por mais de 51 milhões de americanos. Ao final, saíram fazendo de conta que a situação estava tranquila e sob controle. “Estou com Joe”, repetiu várias vezes Chuck Schumer, líder do partido no Senado. Na realidade, faltando quatro meses para a eleição e pouco mais de um mês para a convenção que vai validar a chapa presidencial, os caciques democratas estão mesmo é em polvorosa, divididos entre abafar as vozes que pedem que o presidente jogue a toalha e estimular a manutenção da candidatura como está. No meio do frenético zum-zum-zum, surge com frequência o nome de Kamala Harris, a vice que é vista como opção natural para substituir Biden. A dúvida é: teria ela cacife para derrotar Donald Trump?
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O peso dos 81 anos, evidenciado no malfadado debate no fim de junho, em que Biden manifestou clara dificuldade para rebater o adversário, enfraqueceu sua candidatura e abriu caminho para pedidos públicos de desistência. Mais recentemente, o ator George Clooney, democrata de carteirinha, publicou artigo nesse sentido no New York Times (que cravou seu apelo em editorial), enquanto a influente deputada Nancy Pelosi — 84 anos e concorrendo de novo em novembro —, mais sutilmente, pedia a Biden que tomasse “uma decisão rapidamente”. Não precisava: o presidente insiste todos os dias, em discursos e entrevistas, que o mau desempenho frente a Trump se deveu a circunstâncias especiais (gripe, noite maldormida, jet lag) e que vai continuar no páreo.
O problema, a esta altura, é encontrar um nome com força suficiente para empolgar os eleitores anti-Trump, papel que Biden cumpriu em 2020, mas não parece capaz de repetir agora — as pesquisas pós-debate o colocam seis pontos atrás do adversário e perdendo para ele em todos os estados “pêndulos”, que definem o resultado. Kamala, 59 anos, sai com a vantagem de poder absorver automaticamente os milhões de dólares em doações já arrecadados pela campanha, por estar na chapa — outro nome teria de partir do zero. Filha de mãe indiana e pai jamaicano, ex-procuradora-geral da Califórnia, eleita senadora em 2017, ela fez história como a primeira mulher vice-presidente e entrou na chapa de Biden com a missão implícita de concorrer à Presidência depois dele. Boa de briga, durona no combate à criminalidade, esperava-se que se destacasse no governo, o que não aconteceu. Sem muito trânsito na liderança do partido, desidratou e murchou nas duas atribuições que lhe foram dadas, a de buscar saídas para as hordas de imigrantes na fronteira com o México e a de defender o direito das americanas ao aborto. Sem inspirar grande confiança, ela tem posição ligeiramente melhor do que Biden nas últimas pesquisas. “Ela é uma péssima comunicadora quando o assunto sai de sua área de experiência”, disse recentemente Elaina Plott Calabro, jornalista que passou meses traçando seu perfil.
Depõe contra Kamala ainda o fato de nunca ter tido de conquistar eleitores indecisos perante rivais poderosos — a única eleição que disputou sozinha, para o Senado, foi na democrata Califórnia, e seu rival era do próprio partido. “A história mostra que não há promoção certa de emprego no cargo mais alto da nação. Os eleitores não fazem escolhas baseados no título do candidato”, argumenta Jeffrey Sonnenfeld, professor da escola de administração da Universidade Yale. Dos 49 vice-presidentes americanos, dezenove concorreram à Presidência e apenas seis — entre eles, Biden — obtiveram votos suficientes para se eleger. “Quanto mais tempo durarem os pedidos para que o presidente desista da candidatura, mais chance há de que outros democratas se juntem ao coro. A Casa Branca sabe disso e já pôs em prática um plano de contenção de danos”, afirma Philip Klinkner, professor de ciências sociais da Hamilton College, em Nova York.
Frustrado com as especulações, Biden lança desafios: “Digo a qualquer um desses caras que acham que eu não deveria disputar que concorra contra mim. Anuncie sua candidatura, me desafie na convenção”, declarou em uma entrevista. Também usou o pódio do encontro de cúpula da Otan, em Washington, para pronunciar discursos incisivos e mostrar que tem o respeito de seus pares. Se resistir incólume até o encontro democrata, de 19 a 22 de agosto em Chicago, terá mais uma prova de fogo à frente: o segundo debate na TV com Trump, em 10 de setembro. Caso aconteça, a nação democrata vai tremer nas bases.
Publicado em VEJA de 12 de julho de 2024, edição nº 2901