Com Legoland em Xangai, a China entra no jogo dos parques temáticos
País atrai investimentos estrangeiros por meio do chamado soft power

É possível traduzir os humores de nosso tempo, ao menos do tempo que antecedeu a eclosão da inteligência artificial, por meio dos bloquinhos coloridos da Lego. A diversão, criada em 1932 na Dinamarca, inicialmente com pecinhas de madeira, não demorou a cair no gosto de crianças e adultos. Invadiu a Europa, ganhou os Estados Unidos e não parou de crescer (as vendas em 2024 chegaram a 11 bilhões de dólares, em crescimento anual constante de pelo menos 5%). Em 1999, o tijolinho chegou a ser considerado, depois de pesquisa global, como “a diversão do século”, apesar das recentes reclamações pelo uso excessivo de plástico, na contramão do ambientalismo. Um Lego, enfim, está em todas — capaz de imitar o mundo, seja a Mona Lisa colorida, seja uma nave espacial, seja uma paisagem paradisíaca, seja lá o que for. A novidade, e a comprovação de não haver fronteiras: a China acaba de inaugurar um parque temático associado a um resort, o Legoland, em Xangai, a exemplo dos que já existem, com sucesso, nos Emirados Árabes Unidos, na Coreia do Sul e no Japão.
Virou fenômeno imediato. No início de julho, multidões fizeram filas diante dos portões da empreitada. Projetado para crianças de 2 a 12 anos, o parque conta com mais de 75 atrações interativas, divididas em oito áreas, e uma torre de observação de 60 metros de altura. Miniaturas de cidades chinesas convivem com recriações em Lego de ícones mundiais. Há também um hotel com 250 quartos, brinquedos inéditos como a montanha-russa Big Lego Coaster e shows ao vivo com personagens da franquia Monkie Kid. Os ingressos variam de 319 a 599 iuanes (cerca de 248 a 465 reais). É, enfim, uma festa.

A celebrada inauguração, depois de quatro anos de obras, é mais do que um lançamento de entretenimento: representa a aposta de empresas estrangeiras — e do próprio governo chinês — no turismo como motor de crescimento econômico. Warner Bros., dona da marca Harry Potter, e Hasbro, da Peppa Pig, já anunciaram a construção de instalações inspiradas nos queridos personagens do lado de cá do mundo. Disney e Universal, que operam em Pequim e Xangai, também seguem expandindo seus investimentos, em acirrada competição: o país já abriga cerca de 400 parques de diversões, a maioria, é verdade, controlada por empresas locais.
Há espaço para crescer, e muito. A China é o segundo maior mercado de parques do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. O país recebeu 130 milhões de turistas internacionais em 2023, e o número deve aumentar em curva ascendente, agora que a reabertura depois da pandemia é inevitável, apesar da mão de ferro do regime ditatorial de Xi Jinping. Levantamentos recentes mostram que os adultos chineses ainda viram a cara para a iniciativa, embora seus filhos não, atalho para pavimentar o futuro. “De tão grande, o mercado chinês não pode ser resumido a um único grupo de consumidores”, diz Thomas Law, presidente do Instituto Sociocultural Brasil-China (Ibrachina). “São camadas e camadas de interesses.”
Não é brincadeira, e por trás do entretenimento escancara-se uma outra evidente janela: a China já não pretende fechar-se em si mesma, apesar da cultura, apesar dos naturais e milenares ritos. O espalhafato econômico de Donald Trump, por meio da sucessão de tarifas impostas a parceiros comerciais, oferece uma outra fresta de oportunidade. “A entrada das marcas internacionais mostra como a China está de fato aberta ao mundo, especialmente em grandes centros urbanos como Xangai”, afirma Marcelo Beraldo, vice-presidente da Associação das Empresas de Parques e Atrações do Brasil (Adibra).
Convém, nesse divertido movimento, por assim dizer, olhar para o conjunto da obra: outras regiões com tradição de controle estatal e valores conservadores têm se rendido à força do entretenimento global. Os Emirados Árabes Unidos, por exemplo, já abrigam parques da Warner, da Ferrari, da Marvel e uma versão indoor da Disney. Na Arábia Saudita, o megaprojeto Qiddiya visa transformar o país em um hub de turismo até 2030. A Rússia, embora mais contida, conta com complexos como o Sochi Park, com atrações de inspiração europeia, e buscava atrair grifes ocidentais até Vladimir Putin afiar suas violentas garras. A estratégia: usar a força das franquias globais para construir pontes com o público jovem, fomentar o consumo e projetar uma imagem mais moderna. Trata-se, enfim, de aplicar o chamado soft power. E, claro, gerar empregos e consumo. É roda que está apenas começando, com promissores avanços. Não custa nada, com o Ocidente a beijar o Oriente, lembrar uma das frases mais emblemáticas de Walt Disney: “Se você pode sonhar, você pode realizar”. Como demonstra a multiplicação de parques, os chineses estão com a mão na massa.
Publicado em VEJA de 1º de agosto de 2025, edição nº 2955