Com primeiras medidas, Trump usa a caneta para empurrar todos os limites
Não foi a avalanche de mais de 100 atos presidenciais prometida, mas, com 46, bateu o recorde de decisões em um primeiríssimo dia no poder

Como já havia acontecido na posse de 2017, mas agora com virulência e contundência ampliadas, Donald Trump fez de sua investidura em Washington, na segunda-feira 20, um manifesto no qual, sem surpresa alguma diante do histórico do personagem e das declarações durante a campanha, voltou a colocar os Estados Unidos no centro do universo, com a pretensão de dar as cartas ao restante do mundo. Em seu segundo mandato, agora aos 78 anos, ele se acha predestinado a devolver ao país os tempos dourados, custe o que custar. A seu lado, na cerimônia inaugural, a primeira-dama Melania, vestida de marinho e com um chapéu de abas infinitas que lhe escondiam os olhos, soava imperial e inescrutável. Ela fazia sua parte na composição de uma Casa Branca acima do bem e do mal. Por força dos 6 graus negativos, abandonou-se o plano de cerimônia ao ar livre e Trump discursou a uma plateia de 2 000 convidados espremidos na Rotunda do Capitólio — no mesmo espaço institucional que mandou invadir em 2021, derrotado por Joe Biden, a quem sucede.

Na sequência, entronizado, sentou-se a uma mesa — aliás, duas, uma improvisada na arena esportiva lotada de trumpistas devotos, outra coberta de história, no Salão Oval da Casa Branca — e pôs-se a assinar decreto em cima de decreto com a caneta de ponta grossa. Quanto mais ruidosa a decisão, melhor lhe parecia, mostrando a clara disposição de, nesta segunda versão, testar e superar os limites de determinação associada a um estado de permanente provocação. Não foi a avalanche de mais de 100 atos presidenciais prometida, mas, com 46, bateu o recorde de canetadas de um primeiríssimo dia no poder.
Antes de mais nada, tratou de desmontar o legado de seu antecessor (78 decretos emitidos por Biden foram revogados). Na empreitada, rescindiu com gosto medidas de inclusão racial e de gênero e de combate às mudanças climáticas. No discurso de posse, diante do presidente que se despedia e de Kamala Harris, e à frente de outros ex-chefes do Executivo, vários deles constrangidos e desconfortáveis, Trump já havia condenado o establishment “radical e corrupto” e qualificado sua vitória nas urnas como “um mandato para reverter completa e totalmente uma traição horrível” imposta ao povo americano. “A partir deste momento, o declínio dos Estados Unidos acabou”, decretou.

Na mesma toada, perdoou ou anulou as penas de quase todos os 1 500 condenados pela invasão do Capitólio, aí incluídos depredadores e agressores confessos de policiais que tentavam conter a turba. Pegou mal na força, que o apoiou em peso, e até entre alguns congressistas republicanos — mas se Trump fez, está feito. Na seara dos imigrantes ilegais, um pilar da campanha — que agrupou em “milhões e milhões e milhões de criminosos” —, a primeira medida foi estabelecer emergência nacional na fronteira sul, o que autoriza o redirecionamento de recursos para reforçar a segurança com tropas militares (1 500 soldados extras foram despachados na quarta-feira 22) e a retomada da construção do famoso muro. Ele também desativou um aplicativo criado no governo Biden para encaminhar pedidos de asilo e suspendeu todas as audiências marcadas. Conforme cansou de prometer, espalhou o terror entre os cerca de 11 milhões de estrangeiros em situação irregular ao autorizar batidas da ICE, a temida polícia de imigração, em santuários como escolas, igrejas e hospitais. “Temos receio de sair na rua. Já estamos vendo anúncios do governo pedindo que a população denuncie suspeitos”, relata o instrutor de jiu-jítsu Marcelo, que prefere não dar o sobrenome, um dos cerca de 230 000 brasileiros indocumentados em solo americano.
Em outro decreto, Trump classificou as gangues urbanas como organizações terroristas no nível de Al-Qaeda e Estado Islâmico, orientando o Departamento de Justiça a pedir pena de morte para ilegais que cometam crimes graves, uma postura linha-dura respaldada por 55% da população. O mesmo órgão, aliás, baixou orientação para que qualquer funcionário público ou policial que se recuse a cumprir as novas regras do cerco aos imigrantes ilegais seja afastado e processado. O ato presidencial mais audacioso no quesito imigração é o que anula a concessão automática de cidadania americana a filhos de estrangeiros em situação irregular ou temporária. O direito está previsto na 14ª Emenda à Constituição, que diz que todas as pessoas nascidas nos Estados Unidos são cidadãs do país. Pode um presidente atropelar a Constituição? Promotores em 22 estados governados por democratas acham que não e entraram na Justiça contra o decreto. Trump está pagando para ver, dentro da sua política de forçar ao limite a capacidade de reação das instituições aos seus atos mais polêmicos.

A exemplo dos promotores, ativistas e ONGs também impetraram ações — nesse caso, para derrubar medidas que removem garantias trabalhistas de funcionários públicos, no intuito de substituí-los por aliados, e revogam os “radicais e perdulários” programas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI) em agências governamentais. Na terça-feira 21, foi demitida a almirante Linda Fagan, comandante da Guarda Costeira e primeira mulher a liderar um braço das Forças Armadas, sob a justificativa de “falhas” no controle da entrada de ilegais. Outra ordem executiva proclama que nos Estados Unidos só são reconhecidos dois gêneros, homem e mulher, o que pode levar, por exemplo, o Departamento de Educação a punir escolas que reconhecem a existência de alunos e alunas trans. “Os estados têm leis específicas para fazer frente ao desmonte. Mas Trump está no controle da narrativa, contando com o apoio de quem se cansou do que vê como excessos do progressismo”, avalia Mark Peterson, professor de direito na Universidade da Califórnia.
Providências desse tipo puseram para rodar a cartilha anti-woke, desta vez com atos bem redigidos, formulados com antecedência para evitar obstáculos na Justiça. “Trump está mais focado e mais bem preparado para agir rapidamente e, ao fazê-lo, consolidar seus poderes”, afirma Natasha Lindstaedt, professora de relações internacionais da Universidade de Essex. Fazem parte dessa estratégia os decretos para remover os Estados Unidos do Acordo de Paris — em paralelo à determinação de uma “emergência energética” no maior produtor de petróleo do mundo, o que remove entraves do governo Biden à exploração de combustíveis fósseis — e da Organização Mundial da Saúde (OMS), antecipando a lentidão dos dois processos.

Ações direcionadas à economia e ao combate da inflação pouco entraram na avalanche de assinaturas. Os cortes de impostos prometidos dependem da aprovação da Câmara e do Senado e um projeto nesse sentido está sendo elaborado. O temido tarifaço — ele, sim, aplicável por decreto — não se concretizou, embora em entrevistas Trump tenha ameaçado taxar em 25% as importações do Canadá e do México e em 10% (por enquanto) as da China a partir de 1º de fevereiro. No meio-tempo, instruiu os secretários de Comércio e Tesouro a montar uma “Receita Federal Externa” para coletar os milhões de dólares em tarifas que pretende arrecadar. “É possível que a série de intimidações seja uma tática de negociação. Primeiro, aperta, depois, afrouxa, para apresentar o resultado como uma proposta mais razoável”, ressalta Robert Shapiro, professor de ciência política da Universidade Columbia. Antecipam-se ainda barreiras judiciais aos atos do tal Departamento de Eficiência Governamental que o presidente deu de presente a seu novo aliado favorito, Elon Musk — guerreiro MAGA que, de tão entusiasmado, estendeu o braço com a mão para baixo, não uma, mas duas vezes, em um discurso pós-posse, em gesto estúpido inevitavelmente comparado ao do nazismo. Musk desdenhou. “Essa coisa de todo mundo ser Hitler é veeelha”, postou.
Para quem não vê Trump como salvador da pátria (e quase a metade da população dos Estados Unidos não o aprova), soou como um coral dos anjos o sermão da bispa anglicana Mariann Edgar Budde, que, do púlpito, em frente ao casal Trump, em um serviço religioso tradicional no dia seguinte à posse, pediu “misericórdia” para as pessoas trans e os imigrantes. O presidente ouviu calado, mas, no recôndito da Casa Branca, acionou sua rede social para acusar Budde de ser uma “Esquerdista Radical da turma dos haters” e exigir que se desculpe perante o público — o que ela deixou bem claro que não pretende fazer. Pouca gente, no entanto, anda abrindo a boca para criticar ou rebater o novo presidente americano. Convencido de que está onde está por intervenção divina e como expressão do destino manifesto dos Estados Unidos de se posicionar acima de tudo e de todos, Trump, nestes primeiros dias, dedicou-se a mostrar a que veio. E mostrou.
Publicado em VEJA de 24 de janeiro de 2025, edição nº 2928