Desde que se entrincheirou em uma faixa de território ocupado ao longo da fronteira, logo nos primeiros meses da guerra, a Rússia concentra o grosso de sua ofensiva na Ucrânia em ataques aéreos a diversas áreas urbanas, com seu inevitável rastro de horror. As chuvas de mísseis russos destruíram pelo menos 1 130 hospitais e mais de 1 300 escolas desde o início da invasão, provocando danos da ordem de 750 bilhões de dólares e matando no mínimo 9 511 civis, segundo dados que a ONU sempre ressalta serem subnotificados. Por um bom tempo, a ação foi unilateral — enquanto a Ucrânia sofria, a vida na Rússia seguia normal. Agora, a coisa começa a mudar de figura: no início deste mês, em um único ataque, mais de trinta drones ucranianos atingiram regiões russas simultaneamente.
Essas investidas ainda são esparsas e não há registro de mortes, mas, para o Kremlin, fica cada vez mais difícil sustentar a balela de que o país não está em guerra e convencer a população dos sucessos bélicos de sua “operação especial” na nação vizinha. Baratos e dirigidos remotamente, sem perdas humanas, os drones se tornaram uma inédita arma e têm papel vital nos ataques ao território russo. Nessa última ação, o Ministério da Defesa russo detectou sua presença ao mesmo tempo em seis regiões, entre elas Pskov, a quase 700 quilômetros da fronteira com a Ucrânia. Lá, eles destruíram a pista de uma base aérea e quatro aeronaves que transportavam artilharia pesada às tropas russas invasoras.
Antes disso, drones aniquilaram um bombardeiro supersônico próximo a São Petersburgo, explodiram um prédio dentro do complexo do próprio Kremlin e atingiram Zavidovo, onde fica o palácio residencial de Vladimir Putin. “A presença da guerra em território russo tem impacto psicológico para a população comum”, diz V.S. Subrahmanian, professor de cibersegurança da Universidade Northwestern. Com os mais de 190 ataques do gênero neste ano, a imagem de Putin como garantidor da segurança da Rússia vai se desgastando cada vez mais.
Mesmo sem causar grandes danos, os drones ucranianos perturbam a vida da população. Toda vez que um deles atinge um prédio do governo em Moscou, o aeroporto internacional é fechado. Um moderno conjunto de arranha-céus, que abriga escritórios governamentais e privados, foi alvejado três vezes em um mês, forçando a saída de todos os funcionários. À sensação de insegurança soma-se o impacto econômico do conflito, que pouco a pouco se espalha entre as elites. No início de setembro, o rublo atingiu o menor valor em dezesseis meses, o que forçou o Banco Central a elevar a taxa de juros para 12%, com o objetivo de esfriar a demanda por importações. Um levantamento da Romir, empresa russa de pesquisas, indica que 19% dos russos precisaram reduzir gastos com alimentos e outros itens básicos em agosto.
Os principais alvos dos drones ucranianos até agora são depósitos de combustível e munições, centros de logística e rotas de entrega, além de prédios oficiais, o que requer um planejamento meticuloso. Com o auxílio de agências de inteligência americanas e europeias, a Ucrânia reúne informações sobre radares russos e lança os drones em “enxames”, numa ordem projetada para sobrecarregar as defesas aéreas. Entre 35% e 40% deles atingem os alvos. “A Rússia não pode proteger todo o seu vasto território e está mais preparada para rebater grandes mísseis do que pequenos veículos de voo baixo”, explica Joshua Kroeker, pesquisador do think tank R.Politik, com sede na França. As autoridades ucranianas não comentam ataques dentro da Rússia, mas o governo reservou 1,1 bilhão de dólares para a produção de artefatos nacionais e o Exército criou sessenta novos esquadrões de drones de ataque — praticamente um em cada brigada, a primeira configuração tática desse tipo no mundo.
Mesmo assim, aumentar a escala das operações segue sendo um desafio. Enquanto o Kremlin compra drones kamikazes (que explodem com impacto) do Irã, a Ucrânia não tem autorização para utilizar armas doadas pelo Ocidente dentro da Rússia — o impacto de uma ação desse tipo expandiria perigosamente o alcance da guerra — e, portanto, depende da fabricação interna. O programa de drones ucraniano está pulverizado entre várias organizações estatais, bem como um sem-fim de desenvolvedores autônomos, o que protege os centros de produção da espionagem russa, mas dificulta a operação. Por enquanto, a Ucrânia, com seu exército voador, se contenta em instaurar medo e incerteza entre os russos, mas, à medida que ganha experiência, seus ataques podem se intensificar. Como alertou Platão em A República, a necessidade é a mãe da invenção.
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2023, edição nº 2858