Como morre uma democracia: os impactos do novo avanço autoritário de Maduro
O presidente anuncia que foi reeleito, sem comprovação, e desencadeia protestos e um movimento internacional de rejeição. Lula e o PT foram na contramão
Assolados por mais de uma década de crise econômica e repressão política, os venezuelanos lotaram os pontos de votação no domingo 28, na esperança de encerrar 25 anos do regime comandado por Nicolás Maduro, que levou o país às ruínas e sepultou a democracia, e eleger, enfim, um novo presidente. Passadas apenas seis horas do fechamento das urnas, Maduro esmagou a ilusão de que, derrotado, deixaria de ser Maduro: antes do anúncio dos resultados oficiais, proclamou-se reeleito por mais seis anos, com hipotéticos 51,2% dos votos. No dia seguinte, sacramentou a reeleição em cerimônia no Conselho Nacional Eleitoral (CNE), órgão que ele controla e que sofreu um providencial apagão em seu site. Um dia depois, teve o novo mandato confirmado no Parlamento, dominado por deputados aliados. O motivo da pressa é a manipulação canhestra e evidente — enquanto o governo guarda a sete chaves os relatórios da apuração, a oposição, que teve acesso a parte deles, anunciou que seu candidato, Edmundo González, obteve maioria de, no mínimo, 66%. “É a eleição mais flagrantemente fraudulenta da América Latina em décadas”, afirmou, categórico, o americano Steven Levitsky, autor do best-seller Como as Democracias Morrem, em entrevista a VEJA.
Inconformados, os venezuelanos passaram a semana demonstrando claramente sua insatisfação e pedindo a queda de Maduro, por meio de protestos nas ruas, queima de cartazes pró-governo, panelaços, barreiras de pneus queimados nas avenidas, e sob intensa repressão da polícia, que resultou até a quinta-feira, 1º de agosto, em quase duas dezenas de mortos e 1 000 presos. Com suas artimanhas, Maduro conseguiu o impensável: chacoalhar fortemente o chavismo incrustado em parte da população.
Até os moradores de Petare, a maior favela de Caracas e bastião chavista de primeira linha, desceram em peso para reclamar do resultado. Também inusitadas foram as caravanas de motocicletas em meio a gritos de “Fora, Maduro” — até então, bandos em motos eram marca registrada dos colectivos, milicianos armados pelo governo para abafar brutalmente atos de insubordinação civil. No limite, manifestantes gritando “Este governo vai cair” derrubaram, em cidades do interior, estátuas de Hugo Chávez, antecessor e mentor de Maduro, uma espécie de “pai dos pobres” que, ao longo de catorze anos de deslavado populismo, cultivou um intenso culto à sua pessoa (leia a coluna de Vilma Gryzinski). “As manifestações são espontâneas. O comércio está fechado, e as vias, bloqueadas. Há grande risco de a situação escalar”, disse a VEJA o brasileiro Victor Del Vecchio, advogado de direitos humanos que está em Caracas.
A demora do CNE em publicar o detalhamento dos votos urna a urna levou a ONG americana Centro Carter, que enviou dezessete observadores à Venezuela, a concluir que a eleição não foi democrática. No exterior, houve indignação geral. Líderes de diferentes matizes ideológicos, entre eles os da Argentina, Costa Rica, Peru, Panamá, República Dominicana, Uruguai, Estados Unidos e União Europeia, denunciaram o resultado.
De forma lamentável, o Brasil seguiu na contramão. O presidente Lula, responsável por tirar Maduro do ostracismo internacional e lhe passar a mão na cabeça perante seguidas barbaridades, tentou fazer vistas grossas ao escândalo evidente. Ao contrário dos venezuelanos em peso e da maior parte da comunidade global, ele não viu “nada de grave, nada de assustador” no processo eleitoral. Declarou ainda que bastava a apresentação das atas de votação para acabar com a “briga” e sugeriu que a oposição fosse reclamar à Justiça venezuelana — que, como sabe, é controlada com mão de ferro por Maduro. A postura equivocada foi de encontro até à posição de Celso Amorim, assessor especial enviado a Caracas por Lula para monitorar o processo. Amorim afirmou a VEJA que “ainda é cedo” para reconhecer os resultados. Só quem deu parabéns ao ditador venezuelano foram autocratas com quem o presidente Lula costuma confraternizar na arena global, como Vladimir Putin, da Rússia, Xi Jinping, da China, e Miguel Díaz-Canel, de Cuba.
O PT foi ainda mais explícito no apoio cego e precipitado: em nota, a executiva nacional do partido tratou o venezuelano como legitimamente reeleito, de forma “democrática e soberana”. Esse enorme vexame da esquerda brasileira ficou ainda maior na comparação com o comportamento da esquerda de outros países. O chileno Gabriel Boric, militante de uma vanguarda de esquerda com a rara qualidade de não reverenciar o passado, foi incisivo na rejeição, e até Gustavo Petro, da Colômbia, que já perfilou ao lado de Maduro, manifestou “sérias dúvidas” sobre o processo eleitoral. A Organização dos Estados Americanos (OEA) divulgou comunicado em que não reconhece a vitória. Apesar do posicionamento de Lula, o Itamaraty, honrando mais uma vez sua história, portou-se de forma equilibrada e profissional. A orientação dada à embaixadora na Venezuela, Glivânia Maria de Oliveira, foi a de não comparecer a uma reunião convocada por Maduro para cantar vitória e de insistir para que o CNE comprove a legitimidade da eleição.
O fato é que, em Maduro, o presidente brasileiro tem uma batata quente na mão. Seu governo liderou, com os Estados Unidos, uma tentativa de domesticá-lo com um acordo no qual o venezuelano se comprometeu a respeitar as regras eleitorais. Foi um passo e tanto — para Maduro. Ele se beneficiou do alívio temporário trazido pela retirada de algumas sanções econômicas (já suspensa) e pôs-se imediatamente a descumprir o prometido: amordaçou a oposição, prendeu candidatos e usou de subterfúgios para impedir o avanço de rivais.
Lula, em posição mais do que desconfortável, viu-se obrigado a puxar a orelha do companheiro quando ele falou em “banho de sangue” se fosse derrotado: “Maduro precisa aprender que, quando você ganha, você fica; quando você perde, você vai embora”. Ouviu, em resposta, a sugestão de “tomar um chá de camomila”. A fraude da reeleição agora era a deixa para o petista — como, aliás, fez Joe Biden — denunciar o artifício e reafirmar seu compromisso com a democracia. Optou pelo caminho errado e espera-se, por isso, certa saia justa quando se encontrar com Boric no Chile, na segunda-feira 5. “Não cabe meio-termo. Ou se comprova que o processo na Venezuela foi legítimo, ou foi fraude”, afirmou a VEJA uma fonte no Itamaraty.
Os meses anteriores à eleição foram pródigos em acusações de irregularidades por parte do governo. Os meios de comunicação estiveram sob censura, e a imensa população residente no exterior viu-se, na prática, impedida de participar. Principal líder da oposição, a ex-deputada María Corina Machado foi levada a julgamento por suspeitíssima denúncia de sonegação de impostos e acabou impedida pela Suprema Corte (controlada por Maduro) de concorrer a qualquer cargo por quinze anos. María Corina soube transferir sua popularidade para o veterano diplomata González, um completo desconhecido que, colado a ela, disparou nas pesquisas. Os dois prometem fortalecer a iniciativa privada (ela é admiradora de Margaret Thatcher) e modernizar o arcaico Estado socialista erguido por Chávez.
Anunciando-se como insurgente contra as elites petroleiras corruptas que governavam o país, Hugo Chávez chegou ao poder em 1999 prometendo trazer “a democracia para mais perto do povo”. Montou um sistema pelo qual o presidente resolvia diretamente os problemas dos cidadãos, distribuindo favores — um emprego, um empréstimo, uma casa —, o alicerce do movimento populista que ganhou seu nome. Personificação do poder, Chávez aumentou o campo de ação do Executivo e enfraqueceu as instituições. “Continuou popularíssimo, tanto pelo culto à personalidade como pela bonança econômica trazida pelos altos preços do petróleo”, diz Alejandro Velasco, historiador da Universidade de Nova York. Chávez morreu de câncer em 2013, e Maduro, herdeiro sem o carisma do antecessor, ainda por cima acossado pela derrocada da renda do óleo (a Venezuela tem as maiores reservas comprovadas do mundo), apelou ao loteamento das estatais entre amigos e militares e à repressão de dissidências para se manter no poder. “A ditadura foi ficando escancarada”, resume Velasco.
Sob Maduro, a Venezuela derreteu de vez. Outrora a quinta maior economia da América Latina e sexto principal parceiro do Brasil (hoje é o 44º), viu seu PIB encolher 80%, sendo atualmente equivalente ao da cidade do Rio de Janeiro. Castigada pela crise econômica, pelo despotismo e pela penúria, boa parte da população deixou o país — a diáspora venezuelana, uma das maiores do planeta, é calculada entre 5 milhões e 8 milhões de pessoas abrigadas em países como Colômbia, Estados Unidos e Brasil. Observadores temem que o endurecimento do regime desencadeie uma nova fuga em massa: segundo pesquisa recente, um terço da população restante cogita ir embora se o governo não mudar. “Maduro não vai abrir mão do poder porque corre risco de ir parar na prisão”, afirma Geoff Ramsey, observador do Atlantic Council, de Washington. “Tanto ele quanto boa parte da cúpula militar estão sendo investigados pelo Tribunal Internacional de Haia”, acrescenta o pesquisador David Smilde, especialista em Venezuela.
Depois de anos sob escassez extrema, a liberalização de alguns setores da economia trouxe certo alívio, mas quase tudo continua caro demais para o cidadão comum. Oito em dez venezuelanos vivem abaixo da linha da pobreza, e o salário mínimo, de cerca de 3 dólares por mês, resulta em alta dependência de benefícios como vale-refeição e gasolina subsidiada. O ditador culpa as sanções contra o regime pelas agruras econômicas, embora a crise tenha origem bem antes do bloqueio de 2019. Com controle total sobre as instituições e a corda no pescoço, prevê-se que seja muito difícil expurgar Maduro do Palácio de Miraflores. “Ele aprendeu a operar sob isolamento político e econômico internacional”, avalia Rebecca Hanson, professora do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade da Flórida —, sem falar no suporte oferecido por uns e outros amigos inabaláveis. No cenário mais encorajador, as Forças Armadas, diante da revolta nas ruas, retirariam seu apoio a Maduro (o comando já declarou que ele é total e irrestrito), forçando-o a sair, e, mediante ampla anistia, concordariam com a implantação de um governo de transição. Faltaria, no caso, combinar com María Corina, com González — e com Maduro. “O projeto político dessa oposição é incompatível com o Exército”, diz Carolina Pedroso, professora de relações internacionais da Unifesp. O Brasil, com sua posição de liderança na América do Sul, terá papel determinante no jogo de interesses dos próximos dias. Tomara que acorde de vez e mova as peças na direção certa.
“Endossar chavismo é fracasso do PT”
Autor de Como as Democracias Morrem, Steven Levitsky, professor de estudos latino-americanos de Harvard, falou a VEJA sobre a situação na Venezuela.
Qual a sua opinião sobre o resultado divulgado pelo Conselho Nacional Eleitoral? É obviamente uma fraude. Na verdade, esta é a eleição mais flagrantemente fraudulenta na América Latina em décadas.
Como o senhor avalia a atuação do Brasil nessa crise? O papel do Brasil é crítico. Lula tem uma tremenda influência na região. Ele poderia ter usado essa influência anos atrás, quando a Venezuela iniciou a guinada rumo ao autoritarismo. Em vez disso, os governos do PT endossaram tanto Hugo Chávez quanto Nicolás Maduro. Esse é um dos maiores fracassos das gestões petistas nas últimas duas décadas.
O Brasil ainda pode fazer diferença? Sim, Lula tem uma oportunidade histórica de rever sua postura e defender a democracia. O governo brasileiro deve flexionar seus músculos para pressionar por uma transição democrática. Isso faria uma enorme diferença.
É possível organizar um governo de transição para tirar a Venezuela dessa situação? Claro. Os militares venezuelanos fizeram exatamente isso em janeiro de 1958, quando removeram o ditador Pérez Jiménez. Eles são atores fundamentais dessa crise.
E qual seria o passo seguinte? Depois de remover Maduro, nomeia-se um governo de transição civil de base ampla para estabilizar a situação até que o presidente devidamente eleito, Edmundo González, assuma o cargo.
Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2024, edição nº 2904