Debruçada sobre as tranquilas águas do Golfo Pérsico, West Bay é a Disneylândia dos arquitetos em Doha, que ali plantaram edifícios feitos para impressionar e divertir o olhar. Nesta vizinhança, esbarra-se com uma profusão de luxuosos hotéis e grifes, tudo com vista para o precioso Museu de Arte Islâmica, cujos traços vieram da prancheta do chinês I.M. Pei, o mesmo das pirâmides de vidro do Louvre, em Paris. Bem-vindos à capital do Catar, o minúsculo país que vem se transformando ao se colocar na vitrine global, movimento cujo ápice até agora havia sido a Copa do Mundo, em 2022 — um lance bem-sucedido, mesmo com as contradições que expôs. Mas nenhum esforço de saltar de sua insignificância geopolítica para os holofotes do mundo deu tão certo para o emirado, espremido na Península Arábica entre tantas potências, do que seu atual papel de mediador na guerra entre o Hamas e Israel, missão encabeçada pessoalmente pelo xeque Tamim al-Thani. Em meio à escalada do conflito nos últimos dias, ele segue apertando a mão de todos os envolvidos, pragmatismo que o alçou a improvável protagonista nas altas-rodas onde os destinos do explosivo Oriente Médio estão sendo definidos.
O balaio de conexões do todo-poderoso do Catar, cujo retrato realçando sua juventude (43 anos, dez de trono) adorna as paredes da capital, é seu trunfo maior — vai de Hamas, Irã e Síria a Estados Unidos e Israel, com quem não possui elos diplomáticos formais, mas mantém produtivo diálogo, a ponto de o assessor de segurança nacional israelense, Tzachi Hanegbi, declarar: “Tenho a satisfação de dizer que o Catar está se tornando um parceiro essencial”. A libertação de 89 dos mais de 200 reféns capturados pelos terroristas no bárbaro ataque do grupo em 7 de outubro, em troca de 300 palestinos que estavam presos em Israel, foi cravada nos dourados gabinetes de Doha, com a participação de Estados Unidos e Egito. Agora, em momento de recrudescimento da batalha na Faixa de Gaza, onde quatro de cada cinco moradores deixaram suas casas para escapar dos bombardeios, o emir costura nova trégua nos bastidores e recebe telefonemas e visitas de líderes — o presidente francês Emmanuel Macron foi um que disse ir para lá ajudar nas tratativas.
Uma carta bem guardada em mangas cataris é o fato de o país abrigar a cúpula do Hamas, cujos integrantes levam há uma década ali uma rotina de festas, clubes exclusivos e jatinhos. Fincaram representação política e morada naquelas areias Moussa Abu Marzouk, da direção da organização, Khaled Mashal, que chefia o escritório no exílio, e Ismail Haniyeh, que se autodenomina primeiro-ministro (fortunas somadas em torno de mais de 10 bilhões de dólares). Logo depois do episódio que ceifou a vida de 1 200 pessoas em solo israelense, circulou um vídeo em que Haniyeh estaria celebrando o ato em faustosas dependências. No Four Seasons, apontado como um dos QGs do grupo, os funcionários, orgulhosos de promover um tour gastronômico por estabelecimentos com a assinatura dos estrelados Joël Robuchon e Jean-Georges, são muito bem instruídos a cultivar a discrição. “Nunca nenhum líder do Hamas ficou aqui”, informou a VEJA, depois de um esticado silêncio, o responsável pelo check-in no hotel, com diárias de até 12 000 dólares e onde o “premiê” já foi clicado diversas vezes e concedeu até entrevista.
O trio reside em Doha sob a generosa anuência da monarquia, que vem habilmente transitando entre poderes que não se bicam nesta região do globo na qual qualquer fagulha atiça rivalidades históricas. No tabuleiro internacional, alguns torcem o nariz para o jogo de múltiplas faces de Al-Thani, mas em geral as críticas são apenas para agradar a uma plateia, já que no mundo dos negócios para valer, sobretudo em tempos de guerra, acaba sendo uma vantagem encontrar um canal com o Hamas em terreno amigo. “Não dá para ter as mesmas relações de antes com o Hamas”, alfinetou o secretário de Estado americano, Antony Blinken, que mais tarde deu uma guinada: “Eu realmente agradeço o Catar pelo trabalho que estão fazendo para soltar os reféns”. Entre as opções postas nesse minado cenário, a embaraçosa presença de um escritório político da organização terrorista na pequena nação que busca a modernidade ajuda. “Os Estados Unidos preferem naturalmente um aliado como o Catar para alojá-los do que o Irã ou mesmo o Hezbollah”, avalia Mehran Kamrava, da sede da Universidade Georgetown em Doha.
Nas ruas da capital, onde se vendem flâmulas com a bandeira palestina, também projetada em um telão de uma das zonas mais ricas, fica evidente o lado para o qual pendem os cataris, enfatizado em um recente discurso da mãe do emir, a influente xeica Mozah, para quem a Chanel confecciona coloridos turbantes, que clamou em um evento de educação, uma das áreas para a qual o emirado canaliza vultosas verbas: “Chega de sofrimento em Gaza”. Na semana passada, seu marido, Hamad al-Thani, foi mais contundente: “O que está acontecendo lá é genocídio”, disparou o xeque. Não chega a causar tremores nas mesas de negociação, já que, no ambiente onde as peças estão sendo efetivamente movidas, o emir fala com todos de igual para igual. “O Catar tem a ambição de ser conhecido como a Suíça do Oriente Médio, guiado pela imparcialidade e capaz de conciliar diferenças”, diz o cientista político André Lajst, presidente da ONG StandWithUs.
A fortuna acumulada pelo país deitado sobre generosas reservas de petróleo e gás, que hoje ostenta uma das mais elevadas rendas per capita do planeta, é decisiva para levá-lo ao centro das atenções. Não passa uma semana em que um líder europeu não aporte naquelas areias querendo comprar principalmente o gás que abunda por lá e anda em falta no mundo depois da eclosão da guerra na Ucrânia, com a sanção aos estoques russos. Até o presidente Lula bateu ponto no emirado, uns dias atrás, para estreitar laços comerciais, pedir a liberação do único refém brasileiro na lista dos que ainda estão em poder do Hamas e elogiar as iniciativas do emir. “Quero saudar a mediação do Catar para o acordo anunciado há poucos dias entre Israel e Hamas. Compartilhamos a vocação pela paz”, discursou Lula. Antes, o chanceler Mauro Vieira já havia tido boa experiência com seu par catari, que ajudou a desemperrar a saída de brasileiros de Gaza — e ainda pode ser útil.
Não faz muito tempo, o Catar tirava o sustento da pesca e da extração de pérolas, com uma parcela da população em vida nômade pelo deserto e sem contar com instituições consolidadas. Foi nos anos 1950 que começou a florescer a indústria petrolífera e de gás e, em 1971, veio a independência da Inglaterra. Como alguns de seus vizinhos, entre eles a Arábia Saudita, os esforços do emirado de não mais do que 3 milhões de habitantes, só 10% nascidos ali, têm se concentrado em soft power, conquistando terreno à base de iniciativas como fundar, na década de 1990, o mais importante canal de TV árabe, a Al Jazeera, que vira e mexe incomoda os reinos da região (jamais a família Al-Thani).
Outra frente em que o Catar aposta seus fartos riais, a moeda local, é na importação de universidades americanas de prestígio, como Cornell e Georgetown, enfileiradas em uma zona construída só para elas, e em eventos como a Expo Doha, cuja edição, que vai até março, se fia nos atualíssimos pilares da sustentabilidade. O futebol também serve de alavanca — o dono do PSG transita no círculo íntimo do xeque. A imagem do campeoníssimo Lionel Messi embalado pelo manto-símbolo da realeza do país, após a vitória argentina, virou um retrato deste Catar que quer ser global.
O verniz modernizante, é preciso lembrar, contrasta com uma sociedade conservadora, que faz leitura fundamentalista do Corão, impondo duras regras às mulheres, que viajam sob autorização dos maridos e na separação não ficam com os filhos, e ainda pune com prisão a homossexualidade — temas espinhosos que os holofotes também expõem. Verdade que as rígidas normas não se aplicam à imensa maioria estrangeira que habita o emirado. Repressor internamente, o xeque faz questão de burilar planeta afora a face de um monarca esclarecido, o que avaliza seu papel de mediador. Nessa condição, atuou no Iêmen, em 2007, no Líbano, em 2008, e, mais recentemente, nos contatos entre Estados Unidos e Talibã, outro acerto firmado em Doha, onde o grupo fundamentalista também instalou uma representação política. Tamanha a importância dessa atividade que a chancelaria catari conta com um experiente departamento reservado às mediações.
O princípio da relação entre Catar e Hamas volta a meados dos anos 2000, quando o grupo venceu as eleições para o Conselho Palestino, e o xeque começou a irrigar a máquina pública na Faixa de Gaza, arcando com uma estrutura de 50 000 funcionários sob o aval israelense. “Nos últimos anos, o Catar enviou ao Hamas dinheiro considerado essencial para a vida cotidiana em Gaza”, lembra o historiador Sean Foley, do Middle East Institute, em Washington. Deu-se assim a aproximação, que tem um componente de afinidade, mas acima de tudo daquele pragmatismo que faz o emir apertar firme tão variadas mãos. Aliás, não muito longe do elegante circuito por onde perambulam os líderes da organização terrorista, repleto de marcas europeias como a londrina Harrods e a italiana Valentino (ambas arrematadas por Al-Thani), fica a base aérea americana, a maior dos Estados Unidos na região. Um bom retrato de como o Catar vai cavando seu lugar sob o escaldante sol do Oriente Médio.
Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2023, edição nº 2871