Em dois séculos de democracia americana, algumas eleições tiveram o poder de alterar o rumo da história. A sempre citada vitória de Abraham Lincoln, em 1860, abriu caminho para o fim da escravatura. Franklin Roosevelt, eleito em 1932 no sufoco de uma abissal recessão, trocou o sagrado princípio de não ingerência do Estado por um vigoroso programa de assistência federal. Indo na direção oposta, Ronald Reagan pavimentou, a partir de 1981, o liberalismo econômico que fincou os alicerces da globalização. Em 2016, Donald Trump chegou para combater supostos excessos da diluição de fronteiras com uma injeção de nacionalismo e uma desabusada guinada à direita. Um traço comum dessas transformações foi terem acontecido ao sabor do ritmo dos governantes — quando se viu, a potência americana tinha mudado seu curso, carregando boa parte do planeta com ela.
A eleição de 3 de novembro gira em torno da decisão de colorido plebiscitário entre manter Trump e enveredar pelo anti-Trump, sem espaço para meio-termo. Com duas perspectivas tão diversas, o suspense mantém meio mundo (ou mais) na beira da poltrona, de olhos grudados no resultado. Joe Biden, o candidato democrata que faz 78 anos no dia 20, está à frente nas pesquisas, mas Trump, 74, aparece colado nele em boa parte dos cruciais swing states, os estados que, no funil decisivo do Colégio Eleitoral, são capazes de embolar o resultado — e embolam, sem dó nem piedade. Escaldados pelas falhas nos levantamentos em 2016, quando Hillary Clinton era a favorita e perdeu, os analistas não arriscam previsões nem para a Casa Branca, nem para o Senado, que é republicano e, se continuar assim, pode atrapalhar muito um presidente do outro partido. A poucos dias da eleição, 75 milhões de americanos, mais da metade dos eleitores registrados, já encaminharam seu voto, uma antecipação que as leis permitem e que teve adesão maior ainda neste ano de pandemia. A alta mobilização num país em que ir às urnas é facultativo sinaliza um comparecimento recorde na primeira votação americana em que predominam dois grupos até então secundários, os millennials (nascidos depois de 1980) e os latinos. “Esta eleição vai definir a nossa época”, resume John Ikenberry, professor de política da Universidade Princeton. “Se Trump vencer, ele será capaz de terminar seu trabalho de destruição da ordem liberal internacional, encerrando 75 anos liderança dos Estados Unidos”, afirma.
Até janeiro, Trump tinha a faca e o queijo da pujança econômica na mão, e dispunha dessa arma para atropelar o adversário pouco expressivo e a parcela do eleitorado que se decepcionou com sua truculência e tuítes beirando a insensatez. Não contava com o novo coronavírus, que travou o planeta e despedaçou o maior trunfo da campanha republicana. A economia em frangalhos e a resposta atabalhoada e ineficiente à pandemia chacoalharam as chances do presidente e inflaram o movimento anti-Trump, personificado em Biden, o vice de Barack Obama que está há meio século na política. Os possíveis efeitos do resultado da eleição americana já estão sendo avaliados com lupa em Brasília. Aliado de primeira hora de Trump, de quem copiou diversas estratégias e estilo, o presidente Jair Bolsonaro pode vir a ser alvo de resistência de um eventual governo democrata, sobretudo em questões de meio ambiente e direitos humanos — Biden chegou a falar em levantar 20 bilhões de dólares para “salvar” a Floresta Amazônica, proposta que Bolsonaro qualificou de “lamentável” e “desastrosa”. “O discurso brasileiro sobre os incêndios na Amazônia não foi bom e, se Trump perder, teremos de reavaliar a questão”, afirma Nelson Trad (PSD-MS), presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado.
A análise das consequências para o Brasil no cenário de vitória de Biden perpassa duas trilhas, uma ideológica e a outra pragmática. No Planalto, cogita-se que as estrelas da direita na constelação ministerial — Ernesto Araújo, no Itamaraty, e Ricardo Salles, no Meio Ambiente — sairiam enfraquecidas. Em plena guerra com a ala militar do governo (veja reportagem na pág. 28), é possível que ambos sejam demitidos ou deslocados de suas atuais funções, caso o democrata seja eleito. O fato inexorável é que a derrota de Trump terá, sem dúvida, um impacto na maneira como Bolsonaro se comporta em suas relações com o Congresso, STF, mídia, contas de Twitter e partidos políticos. Até recentemente, com uma leve repaginada nos últimos meses, ele seguia a tática de confronto do colega americano. No caso de derrota desse modelo, e com a reeleição sempre em mente, é provável que ele tente erigir mais canais rumo ao centro. Não só aqui, como nos Estados Unidos. “Independentemente das eleições, trabalhamos sempre para construir pontes com importantes interlocutores dos dois partidos”, disse a VEJA o embaixador brasileiro em Washington, Nestor Forster Jr.
A equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, por sua vez, se diz tranquila diante da possibilidade de vitória democrata. Segundo auxiliares ouvidos por VEJA, o comércio entre os dois países segue estável — até porque a proximidade de Bolsonaro com Trump não rendeu tanto assim. Com uma postura mais subserviente, o Brasil, na verdade, mais cedeu do que colecionou vitórias, dizem eles, citando a sobretaxa imposta ao aço brasileiro, a falta de reciprocidade na isenção de vistos e a tarifa zero para importação de etanol dos Estados Unidos. A maior preocupação, caso Biden ganhe, é com uma elevação dos requisitos para a exportação brasileira de produtos agrícolas, sensíveis às questões ambientais e onde os dois países competem fortemente. Mas mesmo aí não se esperam grandes baques. Talvez até existam ganhos na relação mais independente do que com o alinhamento automático aos Estados Unidos. “A relação comercial é estável, à prova de abalos”, diz Welber Barral, ex-secretário de Comércio Exterior.
Ao longo de três dos quatro anos de seu mandato, Trump alavancou a patamares inéditos a economia bem-arrumada que herdou de Obama. O desemprego cravou a menor taxa em meio século, os salários subiram quase 5% ao ano, o mercado financeiro disparou. Um programa de corte de impostos talhado para reanimar o “espírito animal” do empreendedor americano acabou por dar novo fôlego à indústria e à produtividade. Até que a pandemia levou tudo por água abaixo. No pico do confinamento, em abril, 20 milhões de pessoas perderam o emprego, levando a taxa de desocupação aos níveis da Grande Depressão de 1929.
Na ânsia de manter vivo o impulso econômico, Trump minimizou a gravidade do vírus, investindo contra protocolos de prevenção de comprovada eficiência — a ponto de transformar o uso de máscara em ato político. Com isso, fez dos Estados Unidos o país com mais casos confirmados (indo para 9 milhões) e mais mortes (chegando a 230 000) de Covid-19 no mundo. Como lembra o colunista de VEJA Alon Feuerwerker (leia na pág. 41), esqueceu-se de que os efeitos da crise sanitária poderiam ser sentidos até a data da eleição. Entre os que desaprovam seu governo, o combate à pandemia aparece em primeiríssimo lugar: sete em cada dez americanos acham que a Casa Branca agiu errado. Moradores de Roanoke, na Virgínia, Christian Armah, 26 anos, e a mulher, Jasmine Wallace, 25, contam que já foram hostilizados por republicanos por usar máscara, manifestação de intolerância que põem na conta do presidente. “Ele fez do confronto uma coisa normal. Queremos que os Estados Unidos voltem a ser como antes”, diz Jasmine.
O próximo governo terá de tirar o país do buraco e, seja ele conduzido por Trump ou Biden, o lema dos Estados Unidos em primeiro lugar continuará valendo. A questão, para o eleitor, é de estilo — é mais eficiente agir aos pontapés ou com civilidade? A base eleitoral do presidente aplaude seu discurso recheado de agressões e mentiras, achando que é justamente por ser assim que ele consegue o que quer. Os que se opõem a ele estão fartos do método brucutu e almejam a volta da cortesia e da verdade.
Não é só postura e jeito, porém, que distinguem os dois candidatos. Biden, por exemplo, se coloca no lado oposto da força Trump na questão da sustentabilidade. Um de seus projetos de maior impacto, o “plano verde”, desenhado com a colaboração da deputada Alexandria Ocasio-Cortez, estrela da nova esquerda, reverteria a política atual para o setor — o presidente não só se retirou do Acordo de Paris como desmontou um arcabouço de proteções ambientais que, a seu ver, penalizam à toa a economia. Os democratas também são incisivos na promoção de benefícios sociais (que Trump reluta insistentemente em endossar) e têm intenção de manter e aprimorar o sistema de saúde erguido por Obama (que Trump quer anular). Propõem ainda elevar as taxas das maiores fortunas (que Trump, aliás, reduziu). Na momentosa questão do racismo, Biden apoia as manifestações (já Trump chama a atenção para a baderna, e ponto).
O embate comercial com a China não deve arrefecer, não importa quem saia vitorioso do pleito presidencial. Assessores de Biden afirmam que, sendo eleito, ele expandirá investimentos americanos nas áreas onde os chineses têm se destacado, como inteligência artificial e rede 5G, com o objetivo de barrar a influência de Pequim e reduzir a dependência de componentes made in China — uma proposta que, sem conhecer o autor, qualquer um creditaria a Trump. O que pode mudar, afinal, é a abordagem. Com Biden, a guerra tarifária mano a mano, de dedo em riste, seria substituída por alianças com europeus e asiáticos em busca de interesses comuns. “A estratégia democrata sempre foi a de forjar pactos multilaterais”, aponta o cientista político Ben Gaskins, da Universidade Lewis&Clark, em Portland.
Derrotas em reeleições são raras nos Estados Unidos. Ainda por cima, Trump é desafiado por um Biden incapaz de provocar empolgação. Nesse contexto, o voto assume cada vez mais as feições de plebiscito sobre o trumpismo e tudo o que ele representa. “Queremos manter nosso país intacto e não cair nessa balela de um mundo sem fronteiras”, diz a eleitora republicana Debbie White, 60 anos, que, ao lado da mãe, Paula Cagle, 76, fazia selfies na frente do Trump Hotel, em Washington. Se o trumpismo for derrotado, a guinada conservadora perderá força, mas não morrerá. Trump teve tempo de deixar marcas. A Europa, seguidamente menosprezada por ele, acumulou um estoque de rancor e desconfiança que dificultará o esforço para recompor os vínculos esgarçados entre os dois aliados. As centenas de indicações de juízes conservadores nas diversas instâncias, que culminou com Amy Coney Barrett na Suprema Corte, estremecem decisões polêmicas que se julgavam solidificadas, como o direito ao aborto e a proteção a filhos de imigrantes ilegais nascidos nos Estados Unidos. E ainda que Biden volte a prestar reverência ao papel dos organismos internacionais — as Nações Unidas, a Organização Mundial da Saúde e Organização Mundial do Comércio, entre outras afetadas pelo furacão Trump —, dificilmente voltarão a ser o que eram. “O mundo mudou desde que Obama deixou a Presidência”, ressalta Charles Kupchan, professor de relações internacionais da Universidade Georgetown, em Washington. Dando Trump ou dando Biden, é neste novo mundo que está o futuro dos Estados Unidos e de todo o planeta.
Colaboraram Julia Braun e Victor Irajá
Publicado em VEJA de 4 de novembro de 2020, edição nº 2711