Como os museus da Ucrânia se mobilizam para evitar destruição ainda maior
O destino dos tesouros não foi revelado, pois, como salienta Oleksandra Kovalchuk, diretora do museu de Odessa, 'os inimigos também leem notícias'
A história ensina que a guerra não poupa a arte — ao contrário, costuma utilizá-la como instrumento de dominação. Por isso mesmo, uma verdadeira força-tarefa foi iniciada nos museus ucranianos a partir de 24 de fevereiro, quando o presidente russo Vladimir Putin anunciou a invasão no país vizinho. Na cidade de Odessa, a Pérola do Mar Negro, as mais de 10 000 obras do Museu de Belas Artes, onde residia parte do trabalho de Wassily Kandinsky, célebre artista russo que viveu sua juventude na cidade, foram retiradas, postas em caixas e levadas a um esconderijo, a salvo de bombas e da umidade. O mesmo corre-corre de funcionários e voluntários ocorreu nos dezoito museus de Lviv, a capital cultural do país, na fronteira com a Polônia. O destino dos tesouros não foi revelado, pois, como salienta Oleksandra Kovalchuk, diretora do museu de Odessa, “os inimigos também leem notícias”. Ela fugiu para os EUA para proteger o filho recém-nascido, mas disse se sentir uma “traidora” por abandonar sua missão de preservar o patrimônio e a identidade da Ucrânia.
Alguns tesouros não resistiram. Os bombardeios ao museu de Ivankiv, próximo à capital, Kiev, incendiaram quadros de Maria Prymachenko, artista ucraniana cujas cores brilhantes influenciaram Pablo Picasso. O risco é real e não apenas de destruição por ataques aéreos, mas também de saque inimigo. Enquanto as regiões da Crimeia e de Mariupol são cruciais para Putin do ponto de vista militar, Odessa e Lviv representam a oportunidade de reconstrução da “Nova Rússia”.
A história registra diversas tentativas de aniquilação cultural como forma de apagar o passado estético. Cenas mais chocantes vieram do Oriente Médio, a partir de 2013, quando o Estado Islâmico, para afirmar a superioridade do islamismo, destruiu sítios arqueológicos e históricos na Síria e no Iraque. Ninguém utilizou tanto a arte como ferramenta de poder como Adolf Hitler. O chefe nazista era um artista frustrado, admirador de Michelangelo e Rembrandt, e que, para infelicidade da humanidade, teve a sua admissão rejeitada pela Academia de Belas Artes e pela Escola de Arquitetura de Viena. Durante a II Guerra, os alemães empreenderam uma caçada artística, especialmente contra colecionadores judeus, coagidos a entregar pinturas de Van Gogh, Rafael e outros gênios ou vendê-las por valores irrisórios. O plano megalomaníaco de Hitler era erguer em Linz, cidade dos Alpes austríacos onde passara a infância, o maior museu do mundo. Ali, o Führer pretendia reestruturar toda a história da arte sob a perspectiva do Reich.
A França foi o país mais saqueado, com mais de 100 000 obras levadas à Alemanha. No Tribunal de Nuremberg, soube-se que os ataques eram uma espécie de resposta nazista às guerras napoleônicas, mais de um século depois. “A cultura francesa fascinava os nazistas, em uma contraditória e pendular relação de atração e repulsa”, escreveu Héctor Feliciano, jornalista porto-riquenho, em seu livro O Museu Desaparecido (Editora Martins Fontes). Se poupava a arte clássica, Hitler pretendia destruir a identidade de povos eslavos e também qualquer expressão de arte moderna, como o cubismo, o surrealismo e o dadaísmo, vistas como “produtos de mentes degeneradas”. Com a derrota nazista, boa parte das obras foi recuperada, enquanto outras foram destruídas pelos bombardeios do Exército Vermelho soviético ou têm paradeiro desconhecido. Às vésperas de seu suicídio, em 30 de abril de 1945, encurralado em seu bunker, Hitler ditou seu testamento e reiterou o objetivo de construir o museu, um sonho que jamais saiu do papel, mas que mostra que até mesmo os maiores tiranos podem ter apreço pelo belo — e utilizá-lo para o mal. Que Putin tenha piedade da rica cultura ucraniana.
Publicado em VEJA de 18 de maio de 2022, edição nº 2789