Como Vancouver entrou no epicentro dos fenômenos climáticos radicais
Primeiro, incêndios florestais devastadores. Agora, uma tempestade nunca vista. E a terceira maior cidade canadense virou vitrine do aquecimento global
Emoldurada por montanhas pontilhadas de florestas exuberantes de um lado e pelo Oceano Pacífico do outro, Vancouver sempre foi um reduto de clima ameno no inclemente cenário do Canadá. Enquanto a Costa Leste fervia no verão e a maior parte do país tiritava, enregelada, no inverno, a terceira maior cidade canadense causava inveja com a agradável média de 22 graus nos meses mais quentes e raros dias de termômetros abaixo de zero nos mais frios. Neste ano foi diferente: Vancouver, de uma hora para outra, viu-se no epicentro dos fenômenos radicais trazidos pelas mudanças climáticas. Na sexta-feira 19, um temporal como nunca se viu despejou mais de 250 milímetros de água sobre a parte sul da província de Colúmbia Britânica e um pedaço do vizinho estado de Washington, nos Estados Unidos — caiu, em um dia, o volume de chuvas esperado para todo o mês de novembro. O aguaceiro inusitado desabou menos de seis meses depois de o verão mais quente da história torrar a costa do Pacífico na América Norte e desencadear incêndios florestais de extraordinária intensidade — Lytton, a 150 quilômetros de Vancouver, queimou inteira. “Tantos estragos fazem da cidade e arredores o maior exemplo das mudanças climáticas em curso”, afirma Merran Smith, diretora do instituto Clean Energy Canada, da Universidade Simon Fraser.
A tempestade-monstro de novembro provocou enormes deslizamentos, matou quatro pessoas e desalojou 17 000. Vancouver ficou ilhada: todas as quatro rodovias que conectam a metrópole ao resto do país tiveram de ser interditadas, devido a alagamentos e queda de pontes, e o serviço ferroviário foi interrompido. Uma imensa balsa, desgarrada do porto pelo vento e pelas ondas, foi parar nas águas geralmente plácidas ao longo de um calçadão no centro da cidade. A rede de abastecimento de combustível falhou e o governo decretou racionamento de gasolina. Com estradas, linhas férreas e o porto — a porta de ligação do Canadá com a Ásia — paralisados, a reposição de suprimentos diminuiu e as prateleiras dos supermercados se esvaziaram. “Foi um fenômeno tão anômalo que pode ser classificado como tempestade do século”, diz Armel Castellan, meteorologista do Environment Canada, a agência federal de previsão do tempo.
A relação da enxurrada com o aquecimento global ainda está sendo estabelecida, mas, no caso do extremo calor do verão, já é fato comprovado. Em junho, um fenômeno batizado de “cúpula de calor” afetou toda a Costa Oeste dos Estados Unidos e Canadá, submetendo mais de 40 milhões de pessoas a temperaturas acima dos 45 graus. Na Colúmbia Britânica, onde os termômetros cravaram inacreditáveis 49,6 graus, o calorão provocou 595 mortes. Estorricada, a mata serviu de combustível para incêndios incontroláveis, um desastre até então raro no chuvoso Canadá. Quatro semanas de estudo produziram o diagnóstico: um calor tão intenso seria impossível, não fosse o aquecimento global causado pela ação do homem.
Extremos do clima fazem parte da paisagem da Terra desde sua criação. O problema agora, alertam os climatologistas, é a frequência com que vêm acontecendo e o tamanho incomum do estrago. O temporal que desabou sobre Vancouver e arredores está sendo atribuído ao comportamento errático de um “rio voador”, nome que se dá aos sistemas que transportam umidade dos trópicos para o resto do planeta. Em Vancouver, sua passagem provoca uma garoa fina e constante no inverno. Neste ano, no entanto, coincidiu de temperaturas acima da média na costa do Pacífico ocorrerem em paralelo com uma brusca queda no Alasca, onde fez 40 graus negativos dois meses antes do previsto. O choque entre as duas massas, uma de calor e outra de frio, ampliou as dimensões do “rio voador” que serpenteia pela região — daí as chuvas torrenciais sobre um vasto território.
Traumatizadas pela repetição de tragédias, as cidades afetadas tentam se preparar para a nova era de extremos. Em Vancouver, o governo planeja endurecer a liberação de construções em encostas e intensificar o manejo florestal, realizando incêndios controlados. A infraestrutura portuária vem sendo elevada em cerca de 1 metro, como precaução diante do aumento no nível dos oceanos. E os novos prédios anunciam ar-condicionado central, até então desnecessário. “Pela natureza da região, o processo de adaptação será caro e prolongado”, avisa Barry Prentice, especialista em infraestrutura da Universidade de Manitoba. A conta do aquecimento global está chegando.
Publicado em VEJA de 1 de dezembro de 2021, edição nº 2766