Em pleno século XXI, com o progresso tecnológico abrindo portas e mais portas para o futuro, a humanidade está, de novo, diante do avanço de um inimigo antiquíssimo e recorrente: um microrganismo capaz de se propagar rapidamente pelo planeta, deixando um rastro de enfermidade e morte por onde passa. Originária da China, nesta sua nova e altamente contagiosa versão, uma cepa mutante do coronavírus da pneumonia desencadeou em dose maciça a contrapartida natural desse tipo de ameaça: o medo do vírus, na forma de queda nas principais bolsas de valores, comboios aéreos para remover estrangeiros das áreas de maior risco, regiões em quarentena total, cancelamento de voos para cidades chinesas e máscaras, máscaras por toda parte — inclusive no Aeroporto de Guarulhos, cobrindo o rosto de quem chegava da Ásia. Na quinta-feira 30, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou emergência internacional. Havia mais de 8 000 pessoas infectadas em vinte países e 170 mortos, todos em território chinês.
No Brasil, a primeira suspeita séria de contágio surgiu em Belo Horizonte, onde a estudante de letras E.W. (a família pede que seu nome não seja divulgado), de 22 anos, desembarcou na sexta-feira 24 com febre e dor de garganta, vinda de Wuhan, o epicentro da epidemia — ela passou cinco meses na cidade, estudando mandarim. Uma semana depois, estavam sob observação, além dela, outros oito recém-chegados da China, em São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro, Ceará e Rio Grande do Sul.
Apesar do alto nível de preocupação mundial com o 2019-nCoV, eis o nome do vírus, as perspectivas de controle, combate e prevenção de doenças hoje estão anos-luz à frente da reação diante das mais mortíferas pestes da era contemporânea, como a gripe espanhola, que dizimou 50 milhões em 1918, ou o ebola, responsável pela dolorosa morte de 11 310 pessoas entre 2014 e 2016. “No começo de uma epidemia, a mortalidade é alta. Mas assim que se adota um sistema de identificação e de cuidados mais precisos ela cai”, explica Gerald Keusch, médico especialista em doenças infecciosas da Universidade Boston, nos Estados Unidos.
A situação só não está melhor porque o governo da China demorou a confirmar a ameaça e a se mexer para contê-la. Mas agora atua com a conhecida mão de ferro para estancar seus efeitos. Em seis dias, entre 21 e 27 de janeiro, o total de contaminados contabilizado por Pequim saltou de 300, todos em Wuhan, para 4 500 em várias partes do país. Um dia depois, ultrapassou o número de vítimas atingidas pela síndrome respiratória aguda grave (Sars), que assolou a mesma China entre 2002 e 2003 e afetou 5 327 pessoas. Para além das fronteiras chinesas, no resto do mundo contavam-se cerca de 120 contágios — dos Emirados Árabes Unidos, com quatro casos identificados, aos Estados Unidos, com cinco, mais 92 suspeitos. Um paciente no Japão, outro nos Estados Unidos e mais quatro na Alemanha não se contaminaram na China, mas no contato com infectados em seu próprio país, um deles sem nenhum sintoma. “A transmissão de humano para humano fora do território chinês aumenta dramaticamente os riscos de disseminação”, adverte Keusch.
A imagem da Cidade Proibida e da Grande Muralha vazias e fechadas ao público reforçou o temor mundial: Pequim interditou os dois monumentos, que, juntos, atraem mais de 15 milhões de turistas por ano. As ruas da capital chinesa, assim como no resto do país, se esvaziaram. “O tráfego aqui normalmente é igual ao de São Paulo na hora do rush. Hoje, está parecendo Porto Alegre no Carnaval”, comparou o embaixador do Brasil na China, o gaúcho Paulo Estivallet. Escaldado pelo histórico das epidemias de Sars e das gripes aviária (H5N1) e suína (H1N1), que também surgiram no país nos anos 2000, o governo, corretamente, isolou Wuhan e outras quinze cidades, em um bloqueio que afeta 56 milhões de pessoas. Nelas, escolas, fábricas, lojas, restaurantes, shoppings, cinemas e karaokês estão fechados e os transportes públicos, desativados.
Embora necessário, o bloqueio agravou a situação dos oito hospitais de Wuhan, que foram às redes sociais pedir materiais médicos básicos, como luvas e máscaras. As filas e o acúmulo de doentes nos corredores, uma situação corriqueira na China, aumentaram com o surto. Amparado na sua estratosférica capacidade de mobilização e na farta mão de obra, o governo de Xi Jinping ordenou a construção em tempo recorde de dois hospitais em Wuhan, com 2 300 leitos no total. Os projetos devem estar prontos em meados de fevereiro. Cerca de quarenta brasileiros residentes em Wuhan e outras cidades sofrem os efeitos da quarentena decretada por Pequim. “O drama pessoal deles é terrível”, disse a VEJA o embaixador Estivallet.
O chef Julio Soares de Lima, carioca de 48 anos que vive em Bengbu, a 500 quilômetros de Wuhan, relata sua rotina de sobressaltos e permanente tensão. “Se vou ao supermercado, antes de sair deixo preparado um tapete de hipoclorito, para limpar os pés na volta. Troco de roupa imediatamente e ponho tudo para lavar. Higienizo todos os produtos e alimentos com álcool, da mesma forma que os objetos que toquei na rua, até a maçaneta da porta do carro”, descreve. O maior temor é precisar de cuidados médicos. “A empresa onde trabalho e a escola dos meus filhos recomendaram ficar dentro de casa. Os hospitais não estão dando conta”, afirma Gabriel de Noronha, de 46 anos, gerente de projetos de uma fábrica de automóveis de Wuhan, que saiu de Blumenau há apenas quatro meses.
Os brasileiros consideram “lastimável” a decisão do presidente Jair Bolsonaro de não resgatá-los da China — também não foi removida uma família sob suspeita de contaminação nas Filipinas. “Os meus colegas estrangeiros estão sendo retirados pelo governo de seus países. Nós estamos desamparados”, queixa-se Noronha. Funcionários do Planalto declararam a VEJA que a remoção ainda está sendo avaliada, especialmente depois de os Estados Unidos e o Japão terem buscado mais de 400 pessoas em cidades chinesas.
Apesar das reclamações, a cautela da administração Bolsonaro é justificável. A Rússia fechou sua fronteira com a China, a British Airways suspendeu seus voos para o território chinês e a United Airlines deve fazer o mesmo. Em Hong Kong, onde boa parte da população está em conflito aberto com o governo de Pequim, a administradora Carrie Lam, de máscara, anunciou a suspensão da ligação ferroviária e boa parte dos voos para o continente. Sensíveis a situações de pânico, os mercados financeiros baquearam diante do avanço da propagação do coronavírus. Na segunda-feira 27, quando a Organização Mundial da Saúde elevou o grau de preocupação com o surto, o índice VIX da Bolsa de Chicago, também conhecido como “índice do medo”, afeito a medir os humores do mercado, sinalizava pessimismo — subira para exagerados 18,68 pontos, 6 acima do registrado no dia 17, quando a crise foi confirmada pelo governo chinês. Em São Paulo, os negócios da Bovespa fecharam em queda de 3,29%, provocada pelo impacto das ações da Petrobras, Vale e JBS — empresas que têm na China um cliente crucial (veja a coluna de Murillo de Aragão).
O movimento de queda era até esperado nas circunstâncias, mas foi agravado pelo papel preponderante da China na economia mundial — se os chineses deixam de consumir e viajar, o mundo treme. As estatísticas mostram, porém, que esse recuo inicial costuma ser passageiro e que os negócios voltam ao normal em seguida. Estudo da corretora Charles Schwab, de São Francisco, mostra que o efeito negativo nos mercados da maioria das crises de saúde pública deste século diminuiu depois de passado o primeiro mês. No caso da gripe aviária (H5N1), em 2006, houve queda de 0,2% no índice MSCI, que mede os resultados das principais bolsas de economias desenvolvidas. No terceiro mês, registrou-se resultado positivo de 2,8% e no sexto, de 10%. A maior preocupação nos meios econômicos é com a duração da crise. “Fábricas estão em férias, siderúrgicas, montadoras e turismo estão parados. Se continuar assim, é capaz de o crescimento da China recuar 1 ponto porcentual neste ano”, resume Celso de Hildebrand e Grisi, professor da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo. Grosso modo, isso significa uma perda de 600 bilhões de dólares, que certamente impactaria a economia asiática e a do resto do globo.
China e Austrália se anteciparam nos trabalhos de desenvolvimento de uma vacina, mas ainda não há previsão de quando estará disponível em massa. A expectativa é que as primeiras amostras fiquem prontas em três meses (leia na pág. 56). Embora os índices de propagação e letalidade do coronavírus ainda não estejam bem definidos, especialistas acreditam ser possível traçar linhas de tratamento com base em doenças conhecidas e amplamente atendidas — o que facilita seu controle. “Essa é mais uma doença respiratória que evoluiu para casos graves, algo que já conhecemos”, diz a infectologista Nancy Bellei, da Universidade Federal de São Paulo.
E.W., a brasileira em observação em Belo Horizonte, voltou para o Brasil em um dos últimos voos que saíram de Wuhan, antes do isolamento da cidade. Na escala em Paris, atravessou sem problemas uma barreira sanitária no aeroporto, mesmo com dor de garganta. Três dias depois da chegada, teve febre. Aconselhada por uma irmã enfermeira, buscou atendimento e acabou transferida para o hospital. “Ela está tranquila e sendo bem atendida. Só reclama do isolamento”, afirmou a VEJA o pai da jovem, o veterinário R.W. Catorze pessoas que entraram em contato com a estudante estão sendo observadas enquanto aguardam os resultados dos exames que confirmarão ou não a infecção, a cargo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Pode-se dizer que o Brasil está preparado para enfrentar a ameaça. O país dispõe de ótimos profissionais na área e acumulou experiência com as epidemias recentes vindas da Ásia. Diante do alerta do coronavírus, o Ministério da Saúde montou um Centro de Operações de Emergência, que monitora o avanço da infecção na China e busca diagnósticos definitivos para os casos suspeitos no Brasil. Planejamentos estratégicos e ações específicas já estão definidos e sairão do papel com a confirmação dos primeiros pacientes. “Estamos preparados. Desde 2009, com o H1N1, traçamos um plano competente de contingência”, avalia o infectologista David Uip, reitor do Centro Universitário Saúde ABC. O antigo inimigo invisível da humanidade continua a postos para dar o bote, mas as formas de combatê-lo, felizmente, estão acompanhando a evolução dos tempos.
Colaboraram João Pedroso de Campos, Mariana Rosário e André Siqueira
Publicado em VEJA de 5 de fevereiro de 2020, edição nº 2672