Coronavírus: o pesadelo dos brasileiros que tentam retornar do exterior
Milhares de turistas retidos em países com fronteiras fechadas passam necessidade enquanto aguardam ajuda para voltar
Enquanto a maior parte da população do planeta não vê a hora de poder sair de casa em segurança, um contingente de 16 500 turistas brasileiros retidos no exterior por força de limites à circulação e fechamento de fronteiras não via a hora de poder, finalmente, se trancar com a família. Espalhadas por oitenta países, enfrentando constrangimentos e dificuldades que iam da expulsão de hotéis ao abandono por companhias aéreas, passando pela falta de remédios e alimentos e cartões de crédito estourados, essas pessoas pressionaram o Itamaraty a empreender um tipo de rodada de negociação internacional impensável até poucos meses atrás — o objetivo: convencer empresas e autoridades a abrir aeroportos e autorizar voos proibidos em outra circunstância. Vêm conseguindo aos poucos — cerca de 10 000 já puderam voltar —, mas à custa de muito sofrimento. “É uma situação desesperadora. Estamos arcando com hospedagem e alimentação, sem previsão de retorno”, desabafou a VEJA a analista de sistemas paulista Barbara Carvalho, de 30 anos, presa com sete brasileiros em uma casa em Bangkok, na Tailândia.
A viagem dos sonhos de Barbara ruiu na quinta-feira 26, quando a Tailândia fechou as fronteiras e a Emirates, que a transportava, cancelou os voos para lá. A opção de retorno negociada pelo consulado, com a Ethiopian Airlines, custava salgados 10 000 reais, muito acima de suas possibilidades. Restou a Barbara e aos 5 800 brasileiros que até a quinta-feira 2 ainda lutavam para regressar ao Brasil apelar para a última alternativa da força-tarefa de repatriação montada pelo Itamaraty: contratar voos fretados, um processo caro e trabalhoso. O ministério liberou uma verba de 50 milhões de reais para esse fim, e, na segunda-feira 30, 160 brasileiros que estavam no Equador conseguiram voltar. Os próximos voos charter vão embarcar turistas na Colômbia, Peru, Austrália e Nova Zelândia. “É um megaproblema, mas não vamos deixar nenhum brasileiro para trás”, diz um diplomata envolvido na operação.
Muitas outras nações estão empenhadas na missão de transportar para casa cidadãos presos em fronteiras fechadas. A verba varia, mas o Reino Unido, por exemplo, destinou dez vezes mais que o Brasil ao esforço humanitário de acudir pessoas em situação precária e, dependendo do país, sob forte risco de contaminação. A primeira iniciativa é sempre acionar a companhia aérea que emitiu as passagens. Os diplomatas se encarregam de obter autorização de pouso e decolagem, e ela embarca os passageiros. Foi assim que cerca de 400 brasileiros puderam voltar na quarta-feira 1º, de uma estadia mais prolongada do que o previsto na África do Sul — não sem confusão no aeroporto por causa das inspeções das autoridades locais, que atrasaram a decolagem em quatro horas e impediram o embarque de vários nacionais.
No Peru, que baixou a mais draconiana medida de isolamento da América Latina em 16 de março, a maioria dos 2 000 brasileiros pegos de surpresa foi repatriada, em voos comerciais ou da FAB, mas há casos dramáticos que continuam sem solução. Cinco estão trancados desde o dia 26 na hospedaria Pariwana, em Cusco, onde dois outros hóspedes foram diagnosticados com coronavírus e a polícia isolou o local. “Ficamos juntos na hora das refeições e podemos ser contaminados a qualquer momento. Talvez já estejamos”, relatou a VEJA o carioca Romildo Ribeiro da Silva, empresário de 28 anos que diz estar sentindo sintomas da Covid-19. Em Arequipa, o engenheiro Felipe Nähring, de 31 anos, foi surpreendido quando negociava um projeto de mineração e seu nome acabou removido de uma lista de repatriação porque outro hóspede do hotel em que se hospedava testou positivo. Nähring também está em quarentena, sob vigilância.
O maior desafio da força-tarefa de repatriação está em Portugal, onde aguardam passagem de volta 1 800 brasileiros — lotação de pelo menos quatro voos fretados. A embaixada em Lisboa conseguiu do governo português a autorização para que os aviões pousem e a liberação do desembarque dos viajantes em navios de cruzeiro atracados em sua costa. Trinta turistas que não tinham para onde ir se refugiam em abrigos mantidos por igrejas como a do pastor Rafael Bispo, também ele brasileiro. “Tentamos criar um ambiente bem familiar, porque são pessoas desesperadas. Algumas estão até sem malas”, relatou. A advogada mineira Claudinéia Gonçalves de Araújo, de 42 anos, teve o voo para Campinas, no interior de São Paulo, cancelado e se hospeda na casa de conhecidos no Porto. Diabética, com o seguro-saúde vencido e o estoque de insulina esgotado, ela recebeu do consulado a orientação de ir a um pronto-socorro, mas não pode sair à rua por causa da quarentena obrigatória na cidade. “Tenho três filhos pequenos e preciso voltar”, lamenta-se. Claudinéia ainda esperava tomar o voo comercial pelo qual pagou, previsto para a sexta-feira 3. Enquanto isso, ela sonha em se fechar em casa, a sua casa.
Publicado em VEJA de 8 de abril de 2020, edição nº 2681