Cresce o hábito de espalhar notícias falsas como se fossem fatos concretos
Pesquisa da Universidade Harvard mostra avanço de uma maldição que ganhou força na pandemia e promove a desinformação, o atraso civilizatório e até mortes
Em pesquisa realizada em maio, confrontados com a afirmação de que “o governo, a imprensa e o setor financeiro dos Estados Unidos são controlados por pedófilos adoradores de Satã que operam uma rede global de tráfico sexual de crianças”, 15% dos americanos entrevistados disseram acreditar, sim, na insanidade pregada por mentores de teorias conspiratórias. Na mesma linha, o estado da Geórgia elegeu em novembro uma deputada, Marjorie Taylor Greene, para quem o massacre de vinte crianças na escola Sandy Hook, em 2012 — fartamente documentado com fotos e testemunhos —, teria sido uma armação do movimento antiarmas. No Brasil, panaceias como a cloroquina, por mais que a ciência comprove a ineficácia, continuam a ser usadas como miraculosos remédios contra o novo coronavírus.
Desafiados a provar o que dizem, esses propagadores de absurdos, militantes ferozes na seara política, sacarão de argumentos estapafúrdios pescados em fake news com aquela certeza absoluta que só a ignorância produz. Eis aí um dos efeitos mais deletérios da polarização e da negação da ciência que vicejam nas redes sociais, um amplificador de convicções vazias potencializado neste ano cruel pela pandemia: a multiplicação das pessoas que, baseando-se no que não tem fundamento nem lógica, acreditam saber tudo, mas tudo mesmo, e se arvoram em donas da verdade.
Nada mais ilusório — a verdade verdadeira não é feita de certezas, muito pelo contrário. Cinco séculos antes de Cristo, o filósofo Sócrates foi apontado pelos sacerdotes do Oráculo de Delfos, espécie de guia moral e espiritual da sociedade, como o homem mais sábio da Grécia Antiga. Acostumado a provocar os cidadãos de Atenas com perguntas impertinentes que se transformavam em longos debates — o que acabou por condená-lo à morte por desrespeito às divindades e corrupção da juventude —, Sócrates olhou em volta e percebeu ser o único ali a ter consciência de que ninguém é capaz de deter todo o saber. A constatação, resumida na célebre frase “Só sei que nada sei”, se tornou a base do pensamento filosófico, um exercício de reconhecimento da própria ignorância para buscar respostas e, assim, construir o conhecimento. Aplicado à ciência, é princípio que alavanca todas as descobertas e explicações de fenômenos. Quem, na contramão, se sente à vontade para estufar o peito e ensinar o padre-nosso ao vigário é alvo preferencial da desinformação, do atraso e do desconhecimento.
Falar com convicção sobre temas que não se domina é um fenômeno catalogado pela psicologia desde que, há duas décadas, David Dunning e Justin Kruger, da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, realizaram um estudo sobre a dificuldade do ser humano de admitir a própria ignorância. A dupla convocou voluntários para responder a uma série de perguntas e, ao fim, anotar a quantidade esperada de acertos. Quem tinha pouca cultura e informação errou feio na previsão, pois esperava acertar muito mais; quem conhecia bem os temas levantados também errou feio, pois se saiu muito melhor do que imaginava. Conclusão: as pessoas que conhecem profundamente um assunto subestimam sua capacidade e estão sempre levantando questões e duvidando do próprio taco, um processo inerente à busca da verdade. Já aquelas com vaga noção dão respostas incisivas — erradas, mas incisivas —, superestimam vastamente seus conhecimentos. Ao paradoxo deu-se o nome de efeito Dunning-Kruger, infelizmente super em voga nos tempos atuais. “Percebo muita desinformação e teorias da conspiração”, disse a VEJA o psicólogo Dunning. “A internet impulsionou o efeito que descrevemos.”
Uma manifestação explícita do efeito Dunning-Kruger é a crença, até hoje firme e forte em certos grupos, de que a pandemia, que já matou 3,69 milhões de pessoas, é uma mentira disseminada para controlar cidadãos e atender a interesses espúrios. Outra é o movimento antivacinas, em expansão desde o advento da Covid-19. O ponto mais repisado na campanha desse grupo equivocado é alardear que as picadas podem tornar as crianças autistas, ignorando dezenas de estudos que provam o contrário. Uma pesquisa recente da Universidade Harvard confirma a tendência mostrando que, quanto mais baixo o nível de conhecimento sobre o tema, mais confiança a pessoa tem em pontificar sobre ele: 54% dos convictos entrevistados disseram duvidar em algum grau da eficácia de imunizantes. No caso das vacinas contra a Covid-19, recém-criadas e sujeitas a considerações ideológicas, o fenômeno avança. Um estudo, este feito no Brasil pelo Ipec — Inteligência em Pesquisa e Consultoria, mostra que 46% concordam com pelo menos uma notícia falsa sobre os imunizantes. É muita coisa.
Sem freios, o bloco dos sabichões da internet incomoda quem realmente sabe o que diz. O médico Maurício Lacerda Nogueira, coordenador de pesquisas sobre a vacina chinesa CoronaVac, que já presidiu a Sociedade Brasileira de Virologia e tem pós-doutorado nos Estados Unidos, conta que, em uma reunião no interior de São Paulo sobre prevenção da Covid-19, foi interpelado pelo dono de uma concessionária de automóveis, que lhe deu uma “aula” de transmissão da doença. “Respirei fundo e disse: ‘Eu não discuto preço de carro e o senhor não me ensina como o vírus se reproduz’.” A descrença de parte do público em relação ao conhecimento acadêmico tem raízes na dificuldade geral de entendimento de pensamentos complexos e do próprio método científico: criar hipóteses que precisam ser confirmadas e, nesse processo, abrir brechas para que sejam refutadas. “Não há verdade absoluta na ciência”, diz Nelio Bizzo, professor de biociências da USP e da Unifesp. “Os que a negam acham que ela é imutável e determinista, quando se trata exatamente do contrário.”
A neurociência atribui o negacionismo contumaz ao que chama de viés de confirmação, um traço de personalidade que faz o indivíduo absorver as informações que corroboram sua crença e ignorar as que a desmintam. “Em situações extremas, o viés de confirmação fica mais exacerbado. As pessoas passam a acreditar naquilo que querem, e não nas evidências”, diz Letícia de Oliveira, neurocientista da UFF. Essas crenças são muitas vezes expostas, com elevadas doses de convicção, graças a um componente humano de fundo narcisista. “Certas pessoas têm a necessidade de emitir sua opinião a qualquer custo para se sentir reconhecidas”, explica a psicanalista Paula Peron, da PUC-SP.
A ressonância de teorias como a de que a Terra é plana (basta olhar o horizonte) e de que o mundo foi criado em seis dias (basta ler o livro de Gênesis) se amplifica como nunca antes na fértil terra de ninguém das redes sociais. “As redes deram voz a uma legião de imbecis. Eles têm o mesmo direito à palavra que um prêmio Nobel”, sentenciou o escritor italiano Umberto Eco, pouco antes de morrer. Desenhadas para reunir pessoas e promover debates profícuos, na prática seus algoritmos agem no sentido contrário: por meio de um processo de seleção da informação chamado filtro bolha, o usuário só depara com conteúdo com o qual tem afinidade. O resultado é uma “câmara de eco” em que a mesma opinião é repetida infinitas vezes. “As pessoas não querem ouvir a argumentação do outro”, diz David Nemer, professor da Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos. “É praticamente impossível encaminhar um debate que provoque a reflexão.”
A bolha virtual se faz especialmente presente na esfera política, progressivamente mais corroída pelas estultices e pela disseminação de falsidades. As eleições são cada vez mais influenciadas por correntes de mensagens nas quais a divergência não é permitida e as fake news circulam livremente. Uma pesquisa do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) mostrou que as notícias falsas têm 70% mais chances de ser passadas adiante no Twitter e alcançam os primeiros 1 500 usuários seis vezes mais rapidamente. Em grupos bolsonaristas, uma das narrativas sem amparo na realidade põe em dúvida a lisura da urna eletrônica e defende o voto impresso, que, segundo eles, possibilitaria conter fraudes e auditar resultados. Ponto 1: o sistema foi testado pelo Tribunal Superior Eleitoral em 2002 e só fez aumentar a vulnerabilidade do equipamento. Ponto 2: desde que o Brasil adotou o voto eletrônico, nenhuma fraude foi comprovada. Os fatos convencem os apoiadores de Jair Bolsonaro? Não, nunca. Eles seguem firmes na reivindicação, que dá ao presidente a chance de se blindar contra uma eventual derrota em 2022, tal qual um Donald Trump dos trópicos.
Seja qual for o tema, o nível do debate nos redutos estanques das redes sociais será quase sempre rasteiro, superficial e surdo a ideias contrárias. Para se assistir a uma discussão de alto nível na internet, só apelando a gravações do chamado “debate do século XX” — o célebre embate público, no longínquo 1968, de duas privilegiadas cabeças pensantes em cantos opostos do ringue ideológico: o progressista Gore Vidal e o conservador William Buckley Jr., escritores e desafetos que se digladiaram em afiados diálogos televisionados durante as primárias dos partidos Republicano e Democrata. Vez por outra, é verdade, descambavam para a baixaria e os insultos — afinal, intelectual não é de ferro.
Felizmente, o mesmo ambiente que cultiva a arrogância dos que nada sabem serve de potente ferramenta para a divulgação de temas relevantes e para a obtenção da boa informação — inclusive de quem já disseminou abobrinhas. O youtuber Felipe Castanhari, com quase 14 milhões de inscritos no canal de educação que trata de temas atuais, começou errando e não nega — seu propósito era simplesmente traduzir o que lia em linguagem acessível e divertida. Uma série de equívocos depois, decidiu contratar especialistas para se informar seriamente e não disseminar bobagens. “Sei que influencio pessoas, então é importante ter um respaldo científico ou histórico para o que estou falando”, explica. Na popular seara das séries (veja o quadro), sucessos como O Conto da Aia retratam os perigos embutidos em sistemas políticos organizados em torno da desinformação e do atraso. “A ignorância frequentemente gera mais confiança do que conhecimento”, dizia Charles Darwin, o pai da teoria da evolução que os donos da verdade teimam em negar. O saber genuíno, curioso e aberto a contradições é o vento que empurra a humanidade para a frente, e só o alcançam aqueles que sabem que nada sabem.
Mentira na tela
Universos do futuro breve retratados em séries de sucesso procuram mostrar o cotidiano das pessoas em sistemas baseados na desinformação
Years and Years
A atriz Emma Thompson interpreta uma política descaradamente mentirosa que faz de tudo para se tornar primeira-ministra de um Reino Unido empobrecido e decadente
O Conto da Aia
A maior democracia do mundo dá lugar a um país comandado por tiranos, onde as raras mulheres férteis são estupradas em nome da sobrevivência da sociedade americana
(Des)encanto
O mesmo criador de Homer, o idiota-mor de Os Simpsons, produz Desencanto, uma sátira da Idade Média em que um rei manipulador é desafiado pela filha adolescente
Publicado em VEJA de 9 de junho de 2021, edição nº 2741