Em um país onde os políticos em geral recebem muito mais resmungos e narizes torcidos do que elogios, o francês Jordan Bardella, 28 anos, virou um fenômeno, ao arrastar multidões de fãs para seus comícios e redes sociais. Sua ascensão é ainda mais surpreendente pelo fato de o popstar da política francesa vir de onde vem: ele se tornou o mais potente ímã de eleitores para o Reagrupamento Nacional (RN), fachada repaginada de um partido de extrema direita que, há apenas uma década, nenhum cidadão de respeito seria pego apoiando. Bardella, 28 anos, é cria de Marine Le Pen, a “dona” do RN, que o colocou na presidência da legenda e na cabeça de chapa eleitoral. A manobra, aliada ao ressentimento de boa parte da população com a ordem estabelecida e sua animosidade em relação aos imigrantes, deve dar à legenda sua maior vitória até hoje na França, na eleição legislativa de domingo 30.
A votação foi antecipada pelo presidente Emmanuel Macron, em uma aposta de altíssimo risco que conta com a histórica aversão dos eleitores à ultradireita para, no minuto final — o segundo turno, em 7 de julho —, engolir em seco e eleger os candidatos do governo. Tenha ou não sucesso a estratégia, Bardella deve se consolidar como a cara nova da política francesa. As pesquisas para o primeiro turno indicam que a aliança centrista de Macron sairá da eleição de domingo em terceiro lugar, com 21% dos votos, superada pela Nova Frente Popular (29%), do esquerdista Jean-Luc Mélenchon, e pelo RN, com 37%.
Com essa distribuição, candidatos dos três grupos devem passar para o segundo turno, onde tudo será decidido. Caso a extrema direita faça a maior bancada da Assembleia Nacional, Macron, em tese, teria de indicar o líder dessa ala — justamente Bardella — como primeiro-ministro, ficando sujeito a uma “coabitação” que reduz sua autoridade e capacidade de moldar políticas. Ao se apresentar como opção contra os extremos, fórmula que adotou com sucesso em duas votações presidenciais, Macron espera que os eleitores não repitam dentro de casa o desastre do pleito para o Parlamento Europeu, em junho, quando o RN elegeu trinta deputados, e sua coligação, treze. “Bardella, mais carismático e palatável, deve ser de novo o maior arrecadador de votos”, aposta Emiliano Grossman, professor de política na Sciences Po.
Apesar da clara vantagem, é difícil que o RN salte dos atuais 88 assentos para 289 e conquiste a maioria absoluta na Assembleia Nacional. E Bardella já declarou que não vai requerer o posto de primeiro-ministro sem essa maioria, preservando a legenda do desgaste de fazer parte do governo e apropriando-se do discurso de oposição até a eleição para presidente em 2027, que tem desde já Marine Le Pen como candidata certa. “Sem maioria, o Reagrupamento Nacional vai preferir demonstrar sua força nas urnas sem se expor aos escrutínios de quem lidera o governo”, afirma Arthur Goldhammer, do Centro de Estudos Europeus da Universidade Harvard.
Ficar onde está também contribui para manter intacta a popularidade de Bardella, que nunca ocupou cargo público. “Sua virgindade política virou vantagem num clima de suspeita contra as elites políticas, de direita e de esquerda”, diz Cecile Alduy, especialista em política francesa da Universidade de Stanford e autora do livro Marine Le Pen Presa pelas Próprias Palavras. Ele milita na extrema direita desde os 16 anos e, em tempo integral, depois que abandonou o curso de geografia na Sorbonne — hoje, explora o fato de não ter diploma universitário, raríssimo na política, como prova de que não compactua com as malfaladas elites. Filho do tipo “certo” de imigrantes, Bardella (o sobrenome de origem italiana é pronunciado à francesa, Bardelá) foi criado na periferia de Paris, onde vive a população de baixa renda, embora tenha frequentado escola católica privada. “Estou na política por tudo o que vivi lá atrás”, repete sempre, lembrando dos traficantes em ação na frente do prédio.
Sua maior vantagem é não carregar o sobrenome Le Pen, de triste memória por remeter ao patriarca Jean-Marie. Aos 96 anos e afastado da vida pública em manobra da filha, continua a projetar a sombra do mais radical extremismo de direita (segundo ele, o Holocausto foi “um detalhe” na II Guerra). Marine tratou de suavizar marcas registradas do partido — o antissemitismo, o desdém pela União Europeia, a admiração por Vladimir Putin —, dispensou o nome Frente Nacional e catapultou a influência do protegido boa-pinta. Família, porém, continua a ser assunto sério nas entranhas do RN: nas eleições internas, o ex de Marine, Louis Aliot, foi derrotado por Bardella, que mora com uma sobrinha dela — mas não a mais famosa, Marion Maréchal, que rompeu com os Le Pen e hoje está num partido mais à direita ainda, o Reconquista.
Adolescente que passava horas transmitindo ao vivo partidas de videogame em um canal do YouTube, Bardella pregou no Reagrupamento Nacional uma figura moderna, sempre vestido com ternos impecáveis. No TikTok, onde tem 1,7 milhão de seguidores, mistura vídeos de campanha com imagens comendo cachorro-quente e pescando. Sob o exterior suave movimenta-se um ultradireitista padrão. Em manifesto recém-lançado, um mix de populismo econômico com nacionalismo extremado, ele promete facilitar a expulsão de “estrangeiros islâmicos” e abolir o direito à nacionalidade francesa dos filhos de gente de fora nascidos no país (atribuir as mazelas da França aos imigrantes indesejados é o tópico número 1 de suas falas). Ameaça cortar benefícios sociais para pais de menores infratores e anuncia um “big bang” na educação para restaurar a autoridade nas escolas. Mais uma vez, a força das promessas simplistas vai triunfando sobre a racionalidade.
Publicado em VEJA de 28 de junho de 2024, edição nº 2899