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Crise argentina já é comparável ao desastre da Venezuela

A população do país sofre sob o efeito de terremoto político, inflação sem controle e recorde de juros

Por Marina Guimarães, de Buenos Aires
Atualizado em 4 jun 2024, 12h02 - Publicado em 8 Maio 2022, 08h00

Já faz tempo que Argentina e crise soam como sinônimos — entra governo, sai governo e o vizinho do sul não consegue se livrar da urucubaca política e econômica que o arrasta para o abismo. A pandemia pegou o país com uma dívida impagável, os preços subindo sem controle e a pobreza enchendo as calçadas de pedintes. Ao longo dos meses de estagnação e medidas impopulares, Alberto Fernández, o burocrata que o peronismo instalou na Casa Rosada, rompeu de vez com sua criadora e vice, Cristina Kirchner. Resultado: uma sequência de resultados negativos. Em março, o índice de inflação foi de 6,7%, o segundo mais alto do mundo, atrás apenas da Rússia em guerra (7,6%). Em abril, foram os juros que fizeram os argentinos chorar: o Banco Central os elevou pela quarta vez e a taxa anual chegou a 47%, um recorde planetário.

As perspectivas são desanimadoras. A inflação anual bateu em 55,1% e o mercado calcula que, ao fim deste 16º ano consecutivo de taxa na casa dos dois dígitos, ela dispare para 65%, o maior índice desde 1991. Quem tem de tocar a vida nesse ritmo reclama do supermercado, da farmácia e da padaria, onde é necessário muito jogo de cintura para driblar os acréscimos constantes, e mais ainda do colégio e do plano de saúde, de onde partem aumentos fulminantes — e incontornáveis — três ou quatro vezes por ano. No acumulado do primeiro trimestre, só os gastos com educação subiram 27,9%. “Esses saltos arrebentam o orçamento da família de classe média”, diz Marina Dal Poggetto, diretora da consultoria EcoG.

selo Argentina

Empenhada em escapulir do dragão, a vendedora Sabrina Cabrera Carrizo, 37 anos, casada com um mecânico e mãe de três filhos, se tornou uma caçadora profissional de ofertas. No momento, orgulha-se de seu estoque doméstico de sabão líquido e fraldas. Sabrina diz que aprendeu a detectar falsos descontos e a identificar os dias, horários, locais e datas dos cartões de crédito para as melhores compras, habilidades que a ajudam a economizar até 50% nos gastos. “Temos de ser precavidos, poupar sempre, cortar o que não é essencial e focar na busca de melhor preço”, receita. Nesta cruzada, ela abriu mão dos cortes de primeira de carne bovina e das melhores marcas dos produtos. “Estamos desprotegidos e isso é angustiante”, desabafa.

O Instituto para o Desenvolvimento Social da Argentina (Idesa) calcula que, dos 46 milhões de argentinos, 40% se situam na classe média, mas só metade dessa parcela está na chamada “classe média acomodada”, com salários acima do equivalente a 15 000 reais por mês e poupança em dólar. Os demais se acumulam na “classe média frágil”, que depende da soma dos ganhos de vários membros da família e, se um perde o emprego, o grupo todo pode cair na pobreza. Com o futuro em risco, a qualidade de vida desmorona. “A classe média argentina vive pior do que a do Brasil, do Chile e do Uruguai”, afirma o economista Jorge Colina, presidente do Idesa.

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CAÇADORA DE OFERTAS - A vendedora Sabrina Cabrera Carrizo vive correndo atrás de preços baixos para fazer estoque de produtos, como sabão líquido e fraldas. “Estamos desprotegidos e isso é angustiante”, desabafa. -
CAÇADORA DE OFERTAS – A vendedora Sabrina Cabrera Carrizo vive correndo atrás de preços baixos para fazer estoque de produtos, como sabão líquido e fraldas. “Estamos desprotegidos e isso é angustiante”, desabafa. – (Marina Guimarães/VEJA)

Antes acessíveis, bens como automóveis viram objeto de desejo distante. Segundo a Associação de Concessionárias, o zero-quilômetro mais barato — em abril era o Fiat Mobi, a 2 260 500 pesos (95 000 reais) na versão básica — está 75% mais caro do que há um ano. Diante dessa realidade, carro zero, roupas novas e lazer saíram da lista de compras de gente que, nos bons tempos, não abria mão disso. “Economizamos em coisas supérfluas para manter nosso nível de vida”, afirma Ariel Cortés, 50 anos, gerente de uma reputada rede de varejo. Casado, com dois filhos adolescentes, Cortés comemora oportunidades como a de comprar, nas últimas férias da família à beira-mar, mais de 10 quilos de peixe a preço camarada. “Voltamos com uma caixa de isopor cheia de gelo e de peixes, que congelamos e comemos na Semana Santa”, gaba-se. Mais sofisticada, a socióloga Griselda López, 51 anos, que trabalha por conta própria, aproveitou a pandemia para frequentar cursos de educação financeira e hoje tenta preservar seu poder aquisitivo à base de criptomoedas. “Uso para investir e receber pagamentos, sobretudo dos clientes no exterior”, diz Griselda. A Deel, gestora de folhas de pagamento, diz que, entre os 150 países onde atua, a Argentina tem o maior número de assalariados remunerados em criptomoedas.

Imerso no seu dramático tango político-financeiro, o país está perto de tomar o lugar da Venezuela de pior performance na América Latina. Nos domínios de Nicolás Maduro, a inflação no primeiro trimestre não passou de 11% e a projeção para o ano elaborada pelo Credit Suisse baixou de 150% para 70%, graças a uma política monetária mais realista, a acenos positivos para a promoção de negócios e à expectativa de aumentar as exportações de petróleo. Já na Argentina, o governo de Fernández patina em um círculo vicioso: em choque aberto com Kirchner, que pisa na tecla popular de resistência a arrochos, e enfraquecida pela derrota nas urnas nas eleições legislativas do ano passado, a Casa Rosada abriu a torneira do gasto público, com aumentos de subsídios e planos sociais, o que aprofundou os desequilíbrios. Os vizinhos que se cuidem — no país natal do papa, as bruxas estão soltas e não dão sinal de se recolher tão cedo.

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Publicado em VEJA de 11 de maio de 2022, edição nº 2788

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