Cultura do estupro começa a cair no Oriente Médio
Em vários países da região, a ideia de que a mulher é patrimônio do homem, antes universal, está sendo combatida com novas leis
Em geral, o Oriente Médio não é um lugar amistoso para as mulheres. Em muitos dos países da região, a legislação restringe direitos básicos da população feminina e falha em protegê-las da violência sexual ao não garantir um julgamento adequado às vítimas de estupro. Mas isso está começando a mudar. Em agosto, dois países da região, Jordânia, e Líbano, revogaram leis que permitiam que estupradores evitar processos criminais caso se casassem com suas vítimas. As duas nações não estão sozinhas: no norte da África, a Tunísia também revogou um artigo penal similar em julho desse ano, enquanto Egito e Marrocos já o haviam feito alguns anos atrás (em 1999 e 2014, respectivamente). A revogação desse tipo de lei sem dúvida é uma vitória para os movimentos feministas no Oriente Médio, ainda que a vitória isso, por si só, não signifique que a situação esteja se tornando mais fácil para as mulheres da região.
“Muitas das coisas que tentamos fazer para combater o preconceito contra as mulheres é por meio das leis, mas elas não são suficientes. É necessário dar alternativas ao casamento para as mulheres. Elas precisam ter opções, precisam ter algum lugar para ir, precisam de um emprego. Você precisa fazer as pessoas perceberem que tanto o sexo quanto o estupro não são ‘culpa’ da mulher, e essa mudança é muito mais difícil”, diz Anju Malhotra, assessora para Gênero, Direitos e Desenvolvimento da UNICEF.
De fato, a mentalidade com relação às questões de gênero na região ainda é um empecilho para a igualdade. Um estudo produzido pela ONU Mulheres e pela organização Promundo, realizado em quatro países da região (Marrocos, Líbano, Egito e Palestina), mostra que até três quartos dos homens entrevistados apoiam a ideia de que a função mais importante de uma mulher é cuidar da casa, e o mesmo número também apoia a ideia de que homens devem ter prioridade de acesso ao mercado de trabalho em relação às mulheres. Até 45% dos homens entrevistados que já haviam se casado afirmaram já ter praticado violência física contra suas esposas, e 80% confessaram já terem praticado alguma forma de violência psicológica.
Leis coniventes com a violência sexual, vale lembrar, não são exclusividade do mundo árabe, turco ou persa: esse tipo de legislação existiu até 1994 na França, até 2006 no Uruguai e até 2007 na Costa Rica. Nas Filipinas, país asiático e predominantemente católico, a lei existe até hoje.
Uma das razões tem a ver com o cristianismo, que tem em sua origem a visão de que a mulher era um objeto. O estupro era considerado uma ofensa ao marido, ao pai, ou (no caso das escravas) ao proprietário da vítima. Uma das maneiras de desfazer essa ofensa seria o estuprador “comprar” sua vítima, ou seja, casar-se com ela. Não se considerava o impacto físico e psicológico à vítima em si.
Segundo Steven Pinker, em seu livro Os anjos bons da nossa natureza, a sharia (lei islâmica, baseada no Alcorão), que condena ao apedrejamento uma mulher casada vítima de estupro, foi importada de trechos bíblicos. “Essas são leis antiquadas, que estão presentes em diversas regiões, em diversas culturas e em diversas religiões. Então isso não é algo próprio do Oriente Médio”, diz Rachel Vogelstein, diretora do Programa de Mulheres e Política Externa do Council of Foreign Relations. “Mas elas estão sendo revogadas lá graças ao trabalho de grupos de mulheres da região, que trabalham nisso há décadas, e das legisladoras que assumiram uma posição quanto a isso dentro de seus respectivos Parlamentos”.
Wafa Bani Mustafa é uma dessas parlamentares que lutaram para derrubar esse tipo de lei dentro de seu país, a Jordânia. Eleita parlamentar três vezes consecutivas, Mustafa buscava a revogação do Artigo 308 do Código Penal jordaniano (que permite a isenção da pena ao estuprador que se casa com sua vítima) desde 2013. “Eu acredito que a legislação tem o poder de mudar a sociedade. A revogação desse artigo é muito importante para o Sistema de Justiça Criminal porque coloca um fim à impunidade de criminosos. E também é importante para as vítimas, já que o cancelamento desse artigo impede que elas sejam dadas como um presente adicional ao criminoso que as feriu física, psicológica e socialmente”, diz. Já no Líbano, foi o grupo ativista ABAAD que liderou os esforços para a revogação do Artigo 522, como é conhecida a lei no Líbano. A campanha do grupo ganhou destaque no país por realizarem protestos com mulheres usando vestidos de noivas manchados de tinta vermelha, representando o sangue. “No Líbano, ONGs de direitos das mulheres vêm lutando para repelir o artigo 522 por pelo menos 15 anos. Então o que está mudando não é nosso nível de ativismo, mas o fato de que agora temos outras ferramentas para defendermos os direitos das mulheres com as novas tecnologias e as mídias sociais”, diz Soulayma Mardam, do Projeto de Igualdade de Gênero da ABAAD.
Exemplos como esses mostram que o movimento feminista no Oriente Médio tem potencial para conseguir maiores avanços em direção à igualdade no futuro. Por hora, a estratégia é lutar para garantir os direitos humanos básicos. “Houve uma mudança entre as sociedades e os governos depois da primavera árabe, porque as pessoas entenderam que protestos funcionam, e os governos passaram a ter um certo medo dos movimentos da sociedade civil. E em áreas que não são tão controversas, como é o caso dos direitos das mulheres, é mais fácil para o governo simplesmente atender às exigências dos grupos civis do que combate-los”, diz Sarah Yerkes, do Centro Carnegie Endowment para Paz Internacional.
E o principal indicativo de que a conquista dos direitos por parte das mulheres está chegando ao Oriente Médio são as crescentes taxas de educação da população feminina: em quase dois terços dos países da região, existem mais mulheres do que homens nas Universidades. “A primeira coisa necessária para que ocorra uma mudança é uma liderança interessada em políticas liberais. E a segunda coisa que é importante é que esses 4 países [Tunísia, Marrocos, Líbano, Jordânia] têm uma história forte de educação feminina e de movimentos femininos. Você não pode empoderar mulheres e você não pode mudar a sociedade e mudar as leis se as mulheres não receberem o poder da educação”, diz Loubna Hanna, antropóloga marroquina.