De mal a pior, crise na França se espalha pelos países vizinhos
A Assembleia Nacional força a saída do primeiro-ministro Michel Barnier, há três meses no cargo, agravando o quadro econômico e social

A semana deveria ser de festa na França. Cinco anos depois de um incêndio devastador, a Catedral de Notre-Dame, construção medieval erguida pelo rei Luís VII em Paris, tinha tudo pronto para sua apoteótica reabertura no sábado 7, com a prometida presença de chefes de estado, entre eles o mais requisitado atualmente, Donald Trump, presidente eleito dos Estados Unidos. Uma nuvem, no entanto, ensombrecia o clima de animação e orgulho nacional: três dias antes, a Assembleia Nacional votou uma moção de não confiança e derrubou a coalizão liderada pelo primeiro-ministro Michel Barnier, que fora nomeado pelo presidente Emmanuel Macron havia apenas três meses para encerrar o prolongado vácuo de poder que se seguiu à eleição de julho, na véspera da Olimpíada parisiense. A França, ressalte-se, não está sozinha em seu inferno astral político-econômico. Alemanha e Reino Unido, junto com ela as três maiores economias da Europa, têm a produção estagnada, as finanças em mau estado, a população descontente e nenhum líder agregador e carismático para dar a volta por cima.
Barnier caiu em sua primeira — e premente — iniciativa, a apresentação de um orçamento para 2025 que propunha cortar 60 bilhões de euros em gastos públicos como seguridade social e aumentar tarifas e impostos. Foi amplamente recebido como o orçamento necessário para conter o déficit fiscal francês, que no ano que vem deve superar 6% do PIB, o dobro do limite de 3% fixado pela União Europeia. O problema é que os dois maiores blocos na Assembleia Nacional, à direita e à esquerda, se odeiam, mas odeiam mais ainda Macron e seu primeiro-ministro. Cada um apresentou seu voto de desconfiança e Barnier caiu, sem substituto à vista. Ele e seus ministros devem ficar nos cargos até nova indicação.
Na Alemanha, que já foi o motor da Europa pela potência de sua indústria, a combinação de baixo crescimento e déficit orçamentário enfurece a classe média e paralisa o governo. Em novembro, o chanceler Olaf Scholz, depois de meses às turras, demitiu o ministro das Finanças, Christian Lindner, líder de um dos três partidos da sua coalizão de governo. Os dois se desentenderam sobre como lidar com o rombo orçamentário: Scholz quer tomar empréstimos para investir mais, Lindner defende enxugar benefícios sociais e aumentar impostos. Sem aliança, o chanceler antecipou as eleições legislativas para fevereiro. Além da instabilidade política, os custos trabalhistas elevados e o encarecimento da energia provocado pela guerra da Ucrânia emperraram a recuperação pós-pandemia e as exportações desandaram — as empresas perderam mercado para os produtos da China e perderam a China como mercado, por força do refluxo da economia chinesa. Resultado: em novembro, a Volkswagen anunciou que, pela primeira vez, vai fechar três fábricas no país e cortar milhares de postos de trabalho, o que levou mais de 120 000 empregados a entrar em greve. “A Europa está em situação crítica, em que os pilares de sua prosperidade ameaçam ruir”, diz Mark Leonard, do European Council on Foreign Relations.

Atravessando o Canal da Mancha, o primeiro-ministro do Reino Unido, Keir Starmer, do Partido Trabalhista, eleito em julho com ampla vantagem sobre os conservadores, viu sua popularidade desabar 51 pontos desde então, consequência de medidas impopulares e da impaciência dos eleitores cansados de ver a vida piorar. Starmer prometeu pôr o país no topo do índice de crescimento do G7, o grupo das economias mais avançadas do planeta, através de pesados investimentos em habitação e saúde. Mas mudou de tom e agora admite que será preciso conter gastos para controlar as contas públicas. Nos últimos anos, os britânicos sentiram cair e sua qualidade de vida, resultado de uma década de estagnação agravada pelo Brexit, que rompeu a integração comercial com a União Europeia (UE). Além de não render novos e lucrativos acordos bilaterais, a saída da UE minou o setor financeiro: só na City, a Wall Street de Londres, calcula-se que 40 000 postos de trabalho deixaram de existir.
Como se não bastassem o encarecimento do custo de vida, a guerra da Ucrânia e a ascensão da extrema direita, a União Europeia tem pela frente o retorno à Casa Branca de Donald Trump, presidente que tratou alianças tradicionais e líderes europeus com nítido desdém no passado e que agora ameaça impor tarifas de até 20% sobre os produtos do bloco. “Eles não compram nossos carros. Eles não compram nossos produtos agrícolas. Eles vão pagar caro por isso”, já bradou. De acordo com a consultoria Kiel Institute for the World Economy, a punição pode resultar em queda de 0,5% no produto interno bruto da UE e declínio de 3,2% na encrencada produção alemã. “Será preciso superar as divisões internas para enfrentar a hostilidade de Trump e a crescente competição com a China”, afirma Luigi Scazzieri, do Centre for European Reform, de Londres. Sem lideranças firmes e sem apoio popular, nem todas as preces erguidas na restaurada Notre-Dame vão ser suficientes para a Europa começar a entrar nos eixos.
Publicado em VEJA de 6 de dezembro de 2024, edição nº 2922