Desordem na casa: até rebelião no Partido Republicano joga contra Biden
Dores de cabeça não faltam nesta fase inicial da campanha para derrotar Trump e permanecer mais quatro anos na Casa Branca
Diante do olhar estarrecido da maior parte do plenário, um voto de desconfiança destituiu o presidente da Câmara de Deputados dos Estados Unidos, segundo na linha de sucessão presidencial — a primeira vez na história que um detentor do cargo é removido. O republicano Kevin McCarthy foi atropelado, na terça-feira 3, por seus próprios correligionários: na votação da moção apresentada por Matt Gaetz, expoente da direita radical, os democratas em peso disseram “sim” à remoção de McCarthy, o que era de esperar, mas foram acompanhados por oito republicanos da tropa de choque trumpista (Donald Trump, boquirroto contumaz, assistiu calado a toda a movimentação). À primeira vista, a aberta rebelião nas hostes republicanas só prejudica o próprio partido. Mas na tormentosa situação política em Washington, a mostra de força de um punhado de deputados extremistas dispostos a ver o circo pegar fogo representa uma dor de cabeça para o projeto de reeleição de Joe Biden. E dores de cabeça não faltam nesta fase inicial da campanha para derrotar Trump e permanecer mais quatro anos na Casa Branca.
Refletindo a brecha política que divide a população, o Congresso atual está rachado entre as ínfimas maiorias dos democratas no Senado e dos republicanos na Câmara. Nessa casa, o bonde dos radicais não chega a duas dezenas de deputados, a maioria em primeiro mandato, mas sua capacidade de chacoalhar estruturas e fazer barulho ecoa desde o início do ano, respingando sem parar em Biden. Em nome da exigência de um corte radical dos gastos do governo, eles fazem de tudo para desidratar e emperrar projetos de lei. Mais recentemente, empacaram até o último minuto a elaboração de um acordo suprapartidário para impedir um shutdown, como é chamado o fechamento da torneira de recursos para a máquina pública funcionar — negociação tocada por McCarthy que, no fim das contas, não evitou sua defenestração. O acordo é temporário e a nova data-limite, com nova briga à vista, é 17 de novembro.
Nessa última queda de braço, Biden sofreu um baque extra com a exclusão do orçamento aprovado de uma ajuda de 6 bilhões de dólares à Ucrânia, um ponto de honra do presidente que os trumpistas detonaram sem dó, ainda por cima com apoio popular — segundo uma pesquisa recente, 55% dos americanos acham que o Congresso não deve autorizar mais financiamento para a guerra. Por pressão do mesmo grupo, a Câmara abriu um processo de impeachment para investigar o envolvimento de Biden em supostos pagamentos impróprios feitos por empresas estrangeiras a seu filho Hunter, que também é alvo de inquéritos por porte ilegal de arma e sonegação de impostos. Investigações variadas sobre os negócios de Hunter Biden nunca produziram provas de irregularidades do pai, mas o andamento da ação deve prejudicar sua imagem durante a corrida eleitoral. “É uma medida extremista, feita para chamar atenção e travar o governo”, diz o professor de direito constitucional Philip Bobbitt, da Universidade Columbia.
A tropa trumpista, nesse caso apoiada pelos demais republicanos e até alguns democratas, vem torpedeando ainda os esforços do governo para conter a imigração ilegal, uma questão altamente impopular (só 23% dos americanos aprovam a ação da Casa Branca) e até agora insolúvel — no ano passado, 2,6 milhões de pessoas sem documentação foram apreendidas na fronteira, um recorde, e neste ano o fluxo diário bateu em 9 000 (leia abaixo). A persistente ameaça inflacionária pós-pandemia, que mantém os juros altos e mexe no bolso da população, sobretudo no crucial mercado imobiliário, contribui para a baixa avaliação do pré-candidato à reeleição: apenas 36% da população acha positiva a gestão financeira do governo, mesmo com os níveis de emprego em alta. “Estamos diante de um enorme teste da capacidade de liderança dos democratas”, diz a cientista política Christina Greer, da Universidade Fordham.
Nesse cenário nada animador, a idade de Biden — que terá 82 anos se tomar posse pela segunda vez, em janeiro de 2025 — é outro fator contra, e dos mais sérios: 77% acham que ela atrapalha a atuação do presidente, que tem falhas de memória, divaga em entrevistas e já tropeçou tantas vezes em público que contratou um fisioterapeuta só para tratar disso. De acordo com levantamento da Associated Press, menos de 25% desejam que ele concorra novamente e mesmo entre os eleitores democratas, 55% preferem outro nome. Apenas o presidente Jimmy Carter e o próprio Trump tiveram apoio menor do que Biden nessa altura do mandato — e ambos perderam a reeleição.
Enquanto isso, seu concorrente mais provável, Donald Trump, não para de crescer nas pesquisas, mesmo com 91 acusações em quatro processos criminais nas costas — cada nova ação é enquadrada pelos trumpistas de raiz na muito alardeada “perseguição política” do ex-presidente. Resultado: uma recém-divulgada pesquisa do jornal The Washington Post e da rede de televisão ABC mostrou, pela primeira vez, que, se a eleição fosse hoje, Biden perderia de 42% a 51% para Trump. Entre os caciques democratas, o governador da Califórnia, Gavin Newsom, 55 anos, aparece como um longínquo plano B. Um debate que tem marcado em novembro com Ron DeSantis, governador da Flórida e principal rival republicano de Trump, acende a esperança de que cause impacto e viabilize uma candidatura. Mas ele nega interesse, e Biden não dá mostra de que cogite abandonar o barco.
Em 2020, Biden já era dois anos mais velho do que Trump e pouco carismático, mas soube aproveitar a condição de único adversário possível para atrair os votos dos relutantes e ganhar a eleição. Passados três anos, sem conquistas vistosas para mostrar e com uma vice, Kamala Harris, completamente apagada, sumida mesmo, a situação do presidente é bem mais complicada. Muita troca de farpas, disputa voto a voto e declaração em letras maiúsculas há de rolar até agosto, quando as convenções dos dois partidos terão definido seus candidatos, e mesmo até 5 de novembro de 2024, quando os americanos irão às urnas, finalmente. Mas, a julgar pela situação e pelas pesquisas de agora, Biden vai ter de rebolar — e não tropeçar — para reverter as expectativas e chegar à eleição com chance de ganhar.
Não cabe mais ninguém
Na busca incessante de pontos positivos para seu duvidoso currículo, o presidente Joe Biden anunciou no final de setembro uma iniciativa ousada: concedeu o direito de ficar e trabalhar no país, por dezoito meses passíveis de extensão, a 472 000 venezuelanos que entraram sem a devida documentação até o dia 31 de julho. Não por acaso, a medida foi divulgada em Nova York — a cidade, tradicional santuário de refugiados que está sempre na mira de quem busca vida nova, virou ponto final de uma caravana de ônibus bancados pelo governador linha-dura do Texas, Greg Abbott, lotados de pessoas apreendidas ao cruzar ilegalmente a fronteira do estado com o México, a 3 000 quilômetros de distância, alterando o cenário e as finanças de uma das metrópoles mais visitadas do planeta.
De acordo com o serviço social nova-iorquino, 105 000 imigrantes desembarcaram na cidade desde 2022, a maioria venezuelanos fugindo das agruras da ditadura de Nicolás Maduro. Sem vagas nos abrigos, navios, hotéis e acampamentos montados às pressas, filas de desvalidos ocupam as calçadas em plena Manhattan. Recém-chegados vendem frutas e doces no metrô e em outros pontos, motivo de brigas frequentes com os ambulantes já estabelecidos. Sem acesso a empregos, a leva de refugiados depende de recursos oficiais para hospedagem e alimentação. A conta, se nada fosse feito, chegaria a 12 bilhões de dólares até 2025, suficiente para levar Nova York à falência, bradou o prefeito Eric Adams, um democrata cada vez mais virulento nas críticas à Casa Branca. A anistia, embora bem-vinda, pouco alivia o imenso nó da imigração ilegal.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2023, edição nº 2862