Doses de retrocesso: postura antivacina de Robert F. Kennedy Jr. preocupa o mundo
O nome escalado para a pasta da Saúde do governo americano alimenta o risco de retorno de doenças como a pólio

Nem o protecionismo econômico nem a expulsão de imigrantes. A maior ameaça do novo mandato de Donald Trump para o globo pode vir do negacionismo científico e de uma cruzada contra as vacinas. Ao escolher Robert F. Kennedy Jr. para chefiar o Departamento de Saúde e Serviços Humanos do país, o republicano fez um aceno claro e alarmante sobre sua posição em relação a um dos instrumentos que mais salvam vidas. Expoente de um movimento que prega a desconfiança sobre os imunizantes, Kennedy Jr. poderá arquitetar, de forma institucionalizada, um boicote à vacinação. Indícios inquietantes disso vieram nesta semana com a divulgação de que seu advogado, Aaron Siri, realizou, ainda em 2022, uma petição para a agência regulatória americana revogar a aprovação à vacina da poliomielite, instrumento crítico para deter um vírus que persiste em ameaçar a saúde pública. Micróbios, como a pandemia de covid mostrou, não respeitam fronteiras: um eventual descontrole de infecções como a pólio e o sarampo nos EUA representaria um desafio para o planeta.
Costuma-se dizer que as vacinas sofrem hoje de seu próprio sucesso. Ao liquidarem moléstias que antes eram prevalentes e legavam sequelas e mortes à população, esses produtos começaram a ter sua utilidade questionada. Somam-se a isso alguns poucos estudos malfeitos e depois retratados que plantaram dúvidas e viraram, mesmo ferindo a ética e a ciência, munição para movimentos antivacina encorpados nos últimos anos. No caso da pólio, a luta é antiga, tanto para vencer a doença como para provar a segurança e a eficácia dos imunizantes. O primeiro, obra do americano Jonas Salk, surgiu nos anos 1950 e, graças ao aprimoramento das fórmulas, foi possível derrubar os índices de uma enfermidade notória pelas complicações motoras e respiratórias. Com as campanhas de vacinação mundo afora, a OMS estima que o número de casos tenha despencado 99% de 1988 a 2021.

No entanto, o vírus não sumiu. Pelo contrário, com a queda na adesão às picadas, inclusive no Brasil, o risco de retorno é real. A doença permanece endêmica no Paquistão e no Afeganistão e reapareceu recentemente em Gaza, na esteira dos conflitos entre Israel e Hamas. “Semear dúvidas sobre a segurança de vacinas consagradas como a da pólio é um retrocesso sem precedentes”, afirma a microbiologista Natalia Pasternak, integrante do conselho da Organização Pan-Americana de Saúde. “Antes dos imunizantes, uma em cada cinco crianças com menos de 5 anos morria de uma doença infecciosa. É bom ponderar se queremos isso de volta ao colocar negacionistas no poder.” Ainda dá tempo de prevenir esse estrago.
Publicado em VEJA de 20 de dezembro de 2024, edição nº 2924