E se ele voltar? Como eventual vitória de Trump pode chacoalhar o mundo
O ex-presidente prepara um retorno triunfal que, se acontecer, terá consequências para a democracia do EUA e para as relações com países como o Brasil
Pelo tanto que suas falas repercutem, pelo barulho de suas vitórias nas primárias e pelo grau zero de empolgação em torno de seu adversário, a impressão que se tem hoje em dia é que Donald Trump voltará à Casa Branca na eleição de 5 de novembro. Na frieza dos números, a vitória não é tão certa assim: as últimas pesquisas mostram o empresário bilionário que virou político com 43% das intenções de voto, contra 42% de seu virtual rival, o presidente Joe Biden. Trump se sobressai, com força e estardalhaço, ao demonstrar controle total do Partido Republicano na marcha eleitoral, tendo se livrado logo no início do processo de todos os demais pré-candidatos menos uma: a ex-governadora Nikki Haley, que aos trancos e barrancos, comendo poeira, promete permanecer no páreo ao menos até a “Super Terça”, 5 de março, em que republicanos em quinze estados definirão o nome de sua preferência para a disputa nas urnas.
Imbatível, o ex-presidente segue galvanizando multidões em torno do que define como a “batalha final para salvar o país”. “Vamos olhar direto nos olhos de Biden. E vamos dizer: Joe, você destruiu o país e está demitido”, provocou recentemente, invocando o bordão de quando apresentava o reality show O Aprendiz. É teatro, sem dúvida, mas com tamanho potencial de virar realidade que, em toda parte, já se notam arranjos e até ações concretas em antecipação à estreia de Donald Trump, Parte 2 — e à carga de transtornos que isso pode acarretar.
Como é de seu feitio, Trump usa e abusa da retórica incendiária, em comícios (comparativamente poucos nesta campanha), entrevistas e redes sociais para mobilizar sua fidelíssima base de apoio. A estratégia tem dado certo — ele já tem 60 pontos a mais nas pesquisas de intenção de voto nesta etapa da escolha do que os demais pré-candidatos republicanos de carteirinha e caminha ligeiro, ligeiro para conquistar os 1 215 delegados nas primárias estaduais que lhe darão a indicação do partido. Ele já garantiu 122 deles, contra apenas 24 de Haley, insuflando um clima de euforia entre os trumpistas que deve explodir com o previsto triunfo da semana que começa, atalho para a indicação oficial, durante a Convenção Republicana, entre 15 e 18 de julho, em Milwaukee, mera formalidade. “Trump construiu um domínio sobre o Partido Republicano que não tem paralelo na história”, diz Daniel Galvin, cientista político da Universidade Northwestern.
Em contraste com as plateias energizadas de Trump, seu rival, Joe Biden, e a vice, Kamala Harris, penam para sacudir a apatia reinante entre os democratas. O mais recente levantamento do Instituto Gallup põe Biden com aprovação média de 39% durante o mandato, a segunda pior entre os eleitos após a Segunda Guerra (o campeão é Jimmy Carter, também democrata). O principal motivo para a rejeição do presidente é a idade avançada — tem 81 anos, contra 77 de Trump —, mas ele também sente os efeitos da imigração descontrolada, do apoio incondicional a Israel na guerra na Faixa de Gaza e da lenta recuperação da economia pós-pandemia, apesar de os indicadores no momento serem todos positivos: o desemprego é um dos mais baixos da história, o PIB deve crescer 2,2% este ano e a inflação, que chegou a 14%, baixou para 3,1%. “A conta ficou bem mais salgada nas gôndolas dos supermercados, nos combustíveis e no preço dos imóveis”, diz Amy Walter, analista política do Cook Political Report, de Washington. Biden espera, como em 2020, se beneficiar do voto anti-Trump em novembro, mas desta vez carrega um peso que não tinha antes: o da própria impopularidade e dos quatro anos de Casa Branca.
Mesmo levando-se em conta ter pregado até agora para convertidos e que, no futuro, premido pela busca de votos, deva assumir posições mais digeríveis, a retórica atual de Trump é mais beligerante do que no passado e o tom, de um autoritarismo incompatível com as democracias avançadas. “Em um segundo mandato, a expectativa é que ele se torne mais extremista”, diz John Carey, professor de política da Universidade Dartmouth. Novato na política ao ser eleito em 2016, Trump precisou se rodear de funcionários de carreira que o contiveram, movimento que não deve acontecer em uma eventual nova gestão. Admitindo em tom de brincadeira (mas nem tanto) que, se eleito, será ditador “só no primeiro dia”, ele ameaça demitir quem quer que resista ao seu projeto de poder, acabar com todos os processos federais e estaduais contra sua pessoa (todos injustos, fruto da sempre citada caça às bruxas, claro…), anistiar os participantes da invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 e usar a máquina do Departamento de Justiça para reprimir opositores. Também faz parte da sua agenda desaparelhar agências como a EPA, que cuida do meio ambiente. “Trump agora compreende melhor as vulnerabilidades das instituições e é claramente movido por sentimentos de vingança”, afirma Carey. “Por isso, representa uma ameaça aos pilares democráticos.”
Suas primeiríssimas medidas, repetidas em diversas ocasiões, seriam intensificar a exploração de petróleo, fechar as fronteiras e promover “a maior operação de deportação da história do país”. Também promete “criar uma força-tarefa federal para combater o preconceito anticristão, liderada por um Departamento de Justiça inteiramente reformado, justo e equilibrado”. No caso do aborto, compromete-se a obter a revogação da aprovação das “drogas químicas abortivas” (leia-se pílula do dia seguinte) e a proteger as objeções “religiosas e morais” ao procedimento —embora o assunto apareça pouco em suas falas, visto a maioria da população ser a favor do direito das mulheres de interromper a gravidez indesejada. Seu público ouve e delira, aplaude e ri — tal qual uma seita, o trumpismo desafia profecias sobre seu fim e segue mobilizando multidões, de bandeira em mãos.
Trata-se de um caldo cultural com profundas raízes no imaginário americano, misturando políticas isolacionistas, culto à personalidade, retórica autoritária, nacionalismo e religiosidade. “O que Trump determina ser o certo passa a ser o certo”, diz Robert Shapiro, professor de ciência política da Universidade Columbia. Sua influência quase messiânica provém da capacidade de capitalizar o ressentimento de parte do eleitorado, especialmente a classe média baixa que não tem ensino superior, contra o poder estabelecido, do qual se sente excluído. “O ex-presidente mostrou ser um demagogo inteligente; ele explora o medo e o rancor dos que se sentem deixados para trás pelas elites urbanas”, disse a VEJA Michael Walzer, filósofo da Universidade Princeton. Trump, ao alimentar Trump, não mede palavras. “Há quatro anos, avisei que, se o desonesto Joe Biden chegasse à Casa Branca, nossas fronteiras seriam extintas, nossa classe média seria dizimada e nossas comunidades seriam açoitadas por sangue, caos e violência. Acertei em tudo. Se o desonesto Joe Biden e seus asseclas ganharem em 2024, será pior ainda”, afirmou em um discurso. Nesse contexto, ele, Trump, paladino da luta contra a decadência arquitetada pela “esquerda radical democrata”, seria o salvador da pátria.
Ao mesmo tempo que ensaia um retorno triunfal, Trump enfrenta 91 acusações criminais em quatro processos, entre elas as tentativas de reverter o resultado das eleições de 2020 e o ataque ao Congresso em 2021. Em janeiro, foi condenado por um tribunal de Manhattan a pagar 83 milhões de dólares à colunista Elizabeth Jean Carroll por difamação e multado em 454 milhões de dólares por falcatruas financeiras. Em 25 de março, será julgado por manobras ilícitas no pagamento de suborno à atriz pornô Stormy Daniels. “Caso sofra alguma condenação e mesmo assim seja eleito, o país enfrentará uma crise constitucional inédita”, afirma Paul Kahn, professor de direito da Universidade Yale. Até agora, as ações na Justiça não alteraram em nada sua popularidade — pelo contrário, usou o banco dos réus para reforçar a imagem de perseguido e injustiçado.
Além da sombra autoritária que lançaria sobre a mais vigorosa democracia do planeta, as ondas de choque de uma volta de Trump teriam também impactos globais, pela tendência a atender só aos interesses americanos e dispensar aliados tradicionais. O protecionismo comercial que caracterizou seu primeiro mandato provavelmente retornaria com mais ímpeto, já que promete impor tarifa de 10% sobre todas as importações. O isolacionismo no xadrez geopolítico deixaria o planeta à mercê de embates com alto potencial destrutivo. O ex-presidente não reconhece, por exemplo, nenhum mérito na ajuda americana à Ucrânia e contou recentemente, em um comício, ter dito a um país aliado que, se os parceiros da Otan não pusessem mais dinheiro na aliança, deixaria a Rússia “fazer com eles o que bem entendesse” — o que motivou a maioria das nações europeias a reforçar o orçamento de defesa própria. “Trump não vê qualquer valor em mediar esforços de paz ou tentativas de cooperação. Se não beneficia os americanos, não lhe interessa”, diz Wesley Leckrone, cientista político da Universidade Widener. Com atitudes desse tipo, fortalece o arco dos líderes autocráticos que controlam e manipulam instituições supostamente democráticas, como o “iliberal” Viktor Orbán, da Hungria, e Nayib Bukele, de El Salvador, o “ditador mais cool do mundo” — além de dar fôlego e argumentos para extremistas de direita neste ano em que os eleitores irão às urnas em quase metade do planeta.
Trump mobiliza uma massa fervorosa, que corresponde a dois terços dos republicanos, mas sua postura mercurial cria dificuldade para expandir sua base, obstáculo que se provou fatal em 2020. Os 60% de votos em média que obteve nas primárias republicanas não escondem o fato de que 40% dos eleitores não o escolheram. Além disso, pesquisa divulgada nos últimos dias sobre o que mais preocupa os americanos introduziu um fator novo: 21% dos entrevistados apontaram o extremismo político e a ameaça à democracia como seu maior motivo de inquietação, à frente da imigração (19%) e da economia (18%). Entre os independentes — aqueles que de fato vão definir a eleição —, o índice chegou a 30%. Muitas reviravoltas podem acontecer até novembro, mas uma coisa é certa: a batalha pelo mais poderoso cargo do planeta será de tirar o fôlego.
A visão de cada um
Enquanto Trump quer isolar os Estados Unidos, Biden procura reforçar sua atuação no mundo
Biden
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Publicado em VEJA de 1º de março de 2024, edição nº 2882