Escândalo do Partygate coloca governo de Johnson em risco pela 1ª vez
O primeiro-ministro sempre se safou das crises com notável habilidade, mas caso das festinhas no lockdown coroa declínio de sua aprovação
Conhecido por tomar tombos, se reerguer e manter a ordem sob a cabeleira despenteada, o primeiro-ministro britânico Boris Johnson nunca cambaleou como agora. Nos últimos dias, mesmo com o Reino Unido repleto de assuntos espinhosos a tratar, sua agenda foi quase que inteiramente tomada por atos de contrição. Ele vem fazendo o que pode para frear o Partygate, o escândalo da série de festinhas (dezessete, até onde se sabe) que teve como palco, em maio de 2020, durante rigoroso lockdown, o sobrado de número 10 da Downing Street, a residência oficial londrina desde 1735. O agito social em meio a um período de altas restrições à população — àquela época não se podia estar com mais de uma pessoa que não morasse sob o mesmo teto e mesmo assim com distanciamento — coroou o declínio de sua aprovação no reino, deu gás à oposição e desencadeou em uma ala dos próprios conservadores manifestações públicas de desagrado em relação ao líder que chegou ao posto máximo do poder britânico empunhando a difícil bandeira do Brexit, que ele fez acontecer. “É uma situação muito grave, já que a credibilidade do primeiro-ministro está sendo questionada no coração do partido”, diz o cientista político Matthew Flinders, da Universidade de Sheffield.
Quanto mais tenta se livrar de um cenário sombrio, mais Johnson se afunda. Sua primeira reação quando os rega-bofes vieram à tona, um após o outro, foi negar sua existência para depois, sem alternativa, afirmar que eram encontros de trabalho (leia na coluna de Vilma Gryzinski). É roteiro que lhe tirou a credibilidade e atiçou a ira popular. No sábado 15, um grupo de manifestantes plantou-se em frente à janela de Johnson munido de faixas com frases irônicas: “Meu nome é Boris e esse é um evento de trabalho”. O enredo dos pedidos de desculpas não convenceu, especialmente porque no início da crise ele disse desconhecer as acusações. A reação tardia serviu para cutucar o vespeiro e obrigá-lo a se curvar diante de seus pares quando a situação se tornou inescapável, depois do vazamento pela imprensa de um convite enviado por seu secretário particular recomendando que “todos levassem suas bebidas”. Ao menos quarenta pessoas compareceram, incluindo Johnson e a primeira-dama Carrie.
Mal havia escapado desse enrosco e o primeiro-ministro se viu atropelado por outro de alta delicadeza: mais duas celebrações nas dependências oficiais foram reveladas e seu gabinete se viu obrigado a enviar uma carta ao Palácio de Buckingham, endereçada à rainha Elizabeth. Ambas as festas haviam sido realizadas na véspera do funeral do príncipe Philip, em abril de 2021, ocasião em que a monarca velou o marido solitária, cumprindo regiamente os protocolos pandêmicos. Johnson lançou nova estratégia na terça-feira 18, desta vez culpando os subordinados. “Não fui avisado que as reuniões eram contra as regras”, disse, e saiu de cena. Ao falar isso, imediatamente despertou seu ex-conselheiro e braço direito Dominic Cummings, que disparou nas redes sociais que ele próprio avisara o premiê de que o que estava por vir era mesmo uma festa. “Boris mentiu ao Parlamento”, registrou Cummings no Twitter.
Enquanto Johnson encolhe em popularidade, cravando desaprovação recorde de 73%, aguarda o resultado de uma investigação interna com o objetivo de pôr em pratos limpos o que se desenrolou na residência oficial, devassa liderada por Sue Gray, uma servidora com fama de implacável. Sue tem inclusive à disposição a Scotland Yard, que aliás já anda no encalço de Johnson por outra encrenca, o Wallpapergate, a polêmica reforma da ala residencial de Downing Street bancada por um simpatizante de Johnson. “A falta de transparência de Boris Johnson, que impôs sacrifícios ao britânicos mas fez tudo diferente, ajuda a sedimentar a desconfiança em relação aos governantes”, avalia Monica Schoch-Spana, especialista em gestão de saúde pública da Universidade Johns Hopkins.
De problema em problema, o xadrez do poder só complica. A oposição pede a cabeça de Johnson e sugere a renúncia, o que 60% da população deseja. O caldo de descontentes é engrossado por conservadores que já haviam exposto insatisfação com a era de Boris, tanto em relação à condução da pandemia quanto em relação à administração pós-Brexit. Circula nos corredores de Westminster que pelo menos vinte parlamentares conservadores já teriam enviado cartas ao Comitê Executivo Conservador pedindo que se leve a votação uma moção de não confiança — 54 são necessários para deslanchar o processo que quase custou a cabeça da antecessora de Johnson, Theresa May, e a da dama de ferro Margareth Thatcher. Ambas escaparam, porém, enfraquecidas, acabaram renunciando ao cargo.
O que se tinha como certo até outro dia — a reeleição no pleito de 2024 — virou um imenso ponto de interrogação. O reino chacoalha. Atolado no escândalo sexual do financista Jeffrey Epstein, o príncipe Andrew não conseguiu se ver livre de um processo movido por uma mulher que diz ter sido forçada a manter relações com ele quando tinha 17 anos. E a rainha não viu outro jeito senão deixar o nobre filho à deriva. Andrew perdeu títulos militares, não pode mais usar o “vossa alteza real” e apagou suas redes sociais para fazer o que lhe resta: submergir. Pois, para quem achava que estes dias já estavam suficientemente cheios, veio mais uma. O MI5, serviço secreto inglês, garante que o governo de Xi Jinping plantou uma espiã, Christine Lee, em pleno Parlamento. Pequim rebateu com maldade: “Estão vendo muito 007”. Há vastas incertezas no ar e uma constatação: a novela britânica seguirá eletrizante como nos melhores filmes da franquia de Bond, James Bond.
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2022, edição nº 2773