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EUA: O retrocesso imposto por governadores republicanos nas escolas

Medidas incluem banimento de livros e proibição de temas relativos à diversidade. Até a palmatória, quem diria, está de volta

Por Amanda Péchy Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 12h18 - Publicado em 4 set 2022, 08h00

Faz parte do repertório conservador de conspirações imaginárias que varre o planeta — em papel de destaque, aliás — a suposta existência de um maquiavélico plano global da esquerda para desidratar os valores morais convencionais sobrepondo a eles conceitos desagregadores de raça e gênero. Dentro desse cenário ilusório e irreal, reagir é sinônimo de regredir, desfazendo conquistas e avanços da sociedade. Nos Estados Unidos de hoje, a marcha da direita impõe retrocessos em série, uns mais visíveis, outros menos, mas todos igualmente deletérios.

Entre os mais preocupantes, pelo impacto que terá nas novas gerações, está o gradual desenrolar de um manto de ignorância e preconceito nas salas de aula, onde livros são banidos, temas são censurados, professores são ameaçados e até a punição corporal ensaia um retorno. “As escolas retratam como queremos que seja o futuro e a roda está girando na direção dos valores tradicionais”, diz Meira Levinson, professora de educação da Universidade Harvard.

PUNIÇÃO - Castigo físico para impor disciplina: um distrito escolar reeditou a palmatória, uma prática já enterrada -
PUNIÇÃO - Castigo físico para impor disciplina: um distrito escolar reeditou a palmatória, uma prática já enterrada – (Corbis/VCG/Getty Images)

Na última semana, a pequena Cassville, cidade no Sudoeste do estado do Missouri, saiu do anonimato ao se divulgar que a palmatória, aposentada no passado, voltará a ser aplicada nos alunos “quando todos os outros meios de disciplina falharem”. Segundo o superintendente escolar, Merlyn Johnson, a medida foi um pedido dos próprios pais, que terão de autorizar expressamente sua implementação. Na arena cultural, o principal alvo do movimento conservador é a bem-vinda e necessária inclusão de questões referentes a racismo e direitos LGBTQIA+ no currículo e nas regras de convívio das escolas. A onda de retrocesso se espraia pelos estados governados por republicanos trumpistas, mas chama especial atenção na Flórida e no Texas, as estrelas da constelação vermelha.

A Flórida do governador Ron DeSantis, pupilo ingrato de Donald Trump que se movimenta para ocupar o lugar do mestre na próxima corrida presidencial, regrediu ao aprovar duas leis neste ano. Uma proíbe mencionar orientação sexual e identidade de gênero na sala de aula — a célebre Don’t say gay (“Não fale gay”). Outra impede que o ensino sobre racismo faça menção à “teoria racial crítica”, conceito que insere o preconceito contra negros na sociedade e no arcabouço legal e que é abominado pela direita radical, que o considera antiamericano e antibrancos. Um tribunal estadual trava a aplicação dessa segunda legislação, mas distritos escolares já podem ser processados por violar a Don’t say gay. Vira e mexe, comitês de pais percorrem bibliotecas das escolas estaduais expurgando-as de livros considerados inadequados.

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No Texas, o governador Greg Abbott introduziu neste ano a Declaração de Direitos dos Pais, destinada a reforçar a ideia de que as famílias são “as principais tomadoras de decisão em todos os assuntos relacionados às crianças”. Abbott atendeu assim aos anseios de pelo menos dez comitês de ação política (PACs) criados no ano passado em Dallas por pais indignados com currículos escolares que, segundo eles, são pouco transparentes e dão acesso a livros inapropriados. Por influência desses progenitores, o Texas entrou para o clube dos estados que restringem livros com tamanha gana que incluiu na lista clássicos como O Diário de Anne Frank (“com referências à genitália feminina”), O Conto da Aia e — pasmem — a Bíblia. Segundo a Associação Americana de Bibliotecas, mais de 1 500 títulos foram censurados em escolas em 2021, a maioria sobre LGBTQIA+ e racismo.

LIVROS NA MIRA - Índex: O Texas restringiu a história da menina judia que se escondeu dos nazistas -
LIVROS NA MIRA - Índex: O Texas restringiu a história da menina judia que se escondeu dos nazistas – (Ullstein Bild/Getty Images)

O grupo de defesa da liberdade de expressão PEN America contabilizou neste ano 137 projetos de lei para coibir o ensino sobre racismo, gênero e porções da própria história americana. Pegos no meio do furacão conservador, os alunos que se declaram trans perdem direitos recentemente adquiridos. O governador da Virgínia, Glenn Youngkin, trava uma batalha nos conselhos escolares para impedir que esses estudantes usem os banheiros do sexo que declaram. Nos esportes, 37 estados querem limitar a participação de tais alunos às equipes de seu sexo biológico (dez projetos já foram aprovados).

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A guerra cultural faz parte da estratégia do Partido Republicano nas eleições legislativas e estaduais de novembro. “A suposta doutrinação de estudantes em questões de gênero, sexualidade e raça é um dos principais pontos de discussão da base republicana, que percebe que as pessoas se preocupam mais com banheiros para ambos os sexos do que com o preço da gasolina”, diz o cientista político Thomas Whalen, da Universidade de Boston. Enquanto isso, mais de 160 professores pediram demissão ou foram demitidos nos últimos dois anos, um dado ainda mais preocupante diante do déficit de 280 000 educadores nas escolas públicas provocado pela pandemia. A marcha na direção da treva segue acelerada, engolindo na sua passagem o futuro do país.

Publicado em VEJA de 7 de setembro de 2022, edição nº 2805

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