Forças da Síria conduziram ‘massacre’ contra alauitas após queda de Assad, revela investigação
Quase 1.500 alauitas, grupo étnico associado a Bashar al-Assad, ditador deposto em dezembro, foram mortos em 40 locais entre 7 e 9 de março

Forças ligadas ao governo da Síria e facções criminosas conduziram “massacres” contra alauitas, uma minoria xiita, entre 7 e 9 de março, revelou uma investigação da agência de notícias Reuters nesta segunda-feira, 30. O relatório reconstituiu os ataques e identificou “uma cadeia de comando que leva dos agressores diretamente a homens que servem ao lado dos novos líderes da Síria em Damasco”. Ao todo, quase 1.500 alauitas, grupo étnico associado a Bashar al-Assad, deposto em dezembro, foram mortos em 40 locais no período.
Os assassinatos em série ocorreram após uma rebelião organizada por ex-oficiais leais a Assad, resultando na morte de 200 membros das forças sírias. A Reuters conversou com mais de 200 famílias de vítimas em visitas aos locais das mortes. Por telefonema, a agência também falou com 40 agentes de segurança, combatentes e comandantes. Além disso, dialogou com membros do governo.
Ao mesmo tempo, a Reuters analisou um chat do Telegram criado por um funcionário do Ministério da Defesa para coordenar a resposta do governo ao levante pró-Assad. Dezenas de vídeos, imagens de câmeras de segurança e listas manuscritas com os nomes das vítimas também foram examinados e revisados para comprovar que eram, de fato, verdadeiros.
Com a queda de Assad, o governo sírio passou a ser liderado por uma facção islâmica que foi dissolvida, mas que antes era conhecida como Hayat Tahrir al-Sham (HTS), braço sírio da Al-Qaeda. Ahmed al-Sharaa, que foi líder do grupo, tornou-se presidente da Síria em janeiro. As descobertas da Reuters ocorrem em meio à suspensão gradual de sanções do governo do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, à Síria. As penalidades econômicas foram impostas em resposta ao regime de al-Assad.
O que diz o novo governo
Após o massacre, al-Sharaa conversou com a agência de notícias. Ele alegou que os assassinatos eram uma ameaça à estabilidade e à união da Síria, prometendo punir os responsáveis. O presidente sírio disse que luta “para defender os oprimidos” e não aceitará “que sangue seja derramado injustamente ou fique sem punição ou responsabilização, mesmo entre aqueles mais próximos de nós”, em referência a membros do governo supostamente envolvidos nas mortes
A Reuters identificou uma série de unidades como parte da chacina. Entre elas, estavam o “Serviço Geral de Segurança do governo, seu principal órgão de aplicação da lei na época em que o HTS comandava Idlib e agora faz parte do Ministério do Interior; e ex-unidades do HTS, como a força de combate de elite Unidade 400 e a Brigada Othman”. Além deles, participaram “milícias sunitas que haviam acabado de se juntar às fileiras do governo, incluindo a Brigada Sultan Suleiman Shah e a divisão Hamza, ambas sancionadas pela União Europeia por seu papel nas mortes”.
al-Sharaa ordenou que um comitê abrisse uma investigação sobre a escalada da violência e estabelecesse mediações de “paz civil”. Yasser Farhan, porta-voz do comitê, afirmou que o líder sírio receberá o relatório em duas semanas. Segundo Farhan, o documento foi baseado “em depoimentos e informações coletadas de mais de 1.000 pessoas, além de briefings de autoridades e interrogatórios de detentos”. Ele, no entanto, aconselhou a Reuters a não publicar o seu próprio relatório até que o levantamento do governo fosse divulgado.
O massacre, no entanto, pode ter sido resultado de ordens desastrosas da administração al-Shaara. Em 6 de março, o governo emitiu ordens para reprimir uma tentativa de golpe dos “fuloul “, ou “remanescentes” do regime, disseram seis combatentes e comandantes e três autoridades governamentais à Reuters. A palavra “fuloul” foi interpretada como todos os alauitas, uma minoria de 2 milhões de pessoas.
A família Assad é alauita, o que levou o grupo étnico a ser alvo de perseguição com o fim da ditadura. Estima-se que centenas de milhares de sírios tenham sido mortos desde 2011 devido à guerra civil, reflexo da repressão conduzida por Assad. Os sunitas, que formavam um dos principais grupos armados contra Assad, foram “alvos desproporcionais” do regime, apontou a Reuters.
Sunitas x alauitas
Após a revolta dos apoiadores de Assad, membros de facções criaram listas com nomes de homens a serem alvejados, como ex-membros das milícias de Assad que haviam sido anistiados, ainda que temporariamente, pelo novo governo. Vídeos obtidos pela Reuters mostravam combatentes “humilhando homens alauitas, forçando-os a rastejar e uivar como cães”.
Outras gravações mostravam pilhas e mais pilhas de corpos ensanguentados, muitos deles mutilados. As vítimas abrangeram famílias inteiras, incluindo mulheres, crianças, idosos e pessoas com deficiência, em “dezenas de vilarejos e bairros predominantemente alauitas”, de acordo com a agência. Apenas em um dos vilarejos, 10 dos 30 mortos eram crianças.
Em meio ao massacre, o porta-voz do Ministério da Defesa da Síria, Abdel-Ghani, disse publicamente que a operação na costa estava ocorrendo conforme o planejado e que procurava manter o controle da região, além de “apertar o cerco sobre os elementos restantes de oficiais e remanescentes do regime decaído”, informou a agência de notícias estatal SANA.
Aldeias na mira
As aldeias de um subgrupo de alauitas chamado al-Klazyia testemunharam o maior nível de brutalidade, disse Ali Mulhem, fundador do Grupo de Paz Civil Sírio, uma organização que documenta abusos e disputas, à Reuters. O motivo: a família Assad e muitos dos seus oficiais de segurança de alto escalão são alauitas de al-Klazyia.
Entre elas, estava a aldeia de Sonobar, uma comunidade agrícola de cerca de 15.000 habitantes. A força de elite HTS, chamada Unidade 400, chegou ao local em dezembro sob promessas de que o vilarejo ficaria em paz com a mudança de governo. A presença dos combatentes tornou “a vida como tensa, mas suportável”, segundo relatos de três moradores à agência.
Tudo mudou na manhã de 7 de março, quando o massacre liderado por nove facções teve início. No total, 236 alauitas de Sonobor foram mortos. A maioria era do sexo masculino, com idades entre 16 e 40 anos, de acordo com a Reuters. Uma foto da aldeia, confirmada por dois alauitas sobreviventes à agência, mostrou uma mensagem pichada em uma casa: “Vocês eram uma minoria e agora são uma raridade”.
As regiões de Latakia, Tartous e Hama foram quase esvaziadas após os ataques. Milhares de moradores, inclusive, acamparam em uma base russa próxima. Os ataques, no entanto, ainda não tiveram fim. Entre 10 de maio e 4 de junho, 20 alauitas foram mortos a tiros em Latakia e Hama, de acordo com dados do Observatório Sírio para os Direitos Humanos. Os autores do atentado não foram identificados.