Guinada inesperada na Síria traz alguma esperança e muita incerteza ao país
A fulminante investida que levou à derrubada do ditador Bashar al-Assad por rebeldes islâmicos sacode ainda mais o já convulsionado Oriente Médio

No decorrer da Primavera Árabe de 2011, quando um sopro de liberdade varreu países sob regimes ditatoriais, grupos rebeldes se insurgiram na Síria para derrubar o governo de Bashar al-Assad. Ele reagiu e, durante os treze longos e cruéis anos seguintes, o país se estraçalhou, com cidades destruídas, 500 000 mortos, 12 milhões de pessoas deslocadas — sendo 5 a 6 milhões de refugiados no exterior —, bandos armados controlando nacos do território e as principais cidades retomadas pelo Exército. Assim permaneceu a Síria, congelada em seu drama, até que de repente, em meros onze dias e sem que ninguém esperasse, uma coalizão de milícias partiu do noroeste em direção ao sul, ocupando tudo no caminho e conquistando Damasco praticamente sem resistência. Como isso aconteceu? O que virá agora? Sem resposta, o mundo acompanha, pasmo, a revolução síria, mais um solavanco no cada vez mais convulsionado Oriente Médio.
Esperançosa de um tempo melhor, após mais de meio século de repressão sob o clã Assad, a população saiu às ruas, gritando “liberdade” e destroçando retratos e estátuas tanto do presidente deposto quanto do pai dele, Hafez al-Assad, morto em 2000. Parentes invadiram presídios, onde milhares de presos políticos eram submetidos a torturas medievais. Um novo governo provisório foi instalado, sob a liderança do primeiro-ministro interino (teoricamente, até 1º de março) Mohammed al-Bashir, que anistiou os soldados e prometeu respeitar as minorias religiosas. O chefão do levante, porém, é Ahmed al-Sharaa, muçulmano sunita que hoje desfila em uniforme militar mas até ontem, de turbante jihadista, atendia pelo nome de guerra de Abu Mohammad al-Jolani e está na lista de terroristas dos países do Ocidente.
Ele lidera o grupo Hayat Tahrir al Sham (HTS), que dava as ordens na cidade de Idlib (onde al-Bashir exerceu a mesma função de agora, aparentemente com moderação) e arredores, no noroeste do país, e, unindo-se a outros bandos rebeldes, comandou a fulminante campanha até Damasco. “Essa combinação de poderes de oposição foi inédita e permitiu o avanço-relâmpago”, diz Jacob Shapiro, professor de relações internacionais da Universidade de Princeton.
Al-Sharaa é cria do fundamentalismo da Al-Qaeda, de Osama bin Laden, mas garante ter se desligado e seguir agora uma linha pragmática. A ver — no primeiro discurso em Damasco, na venerada mesquita Umayyad, carregou no tom religioso ao afirmar que “esta vitória, meus irmãos, é uma vitória de toda a nação islâmica”. Em paralelo, deu entrevistas à CNN e ao New York Times com acenos ao Ocidente. “Ele está falando as palavras certas”, disse, ressabiado, o presidente americano, Joe Biden. Os Estados Unidos são apenas uma das potências com o pé fincado na areia movediça da Síria: têm cerca de 900 soldados lá estacionados para sustentar os curdos, um grupo étnico dominante no noroeste, onde quer fundar o país, e que foi crucial no desmonte do Estado Islâmico, bando de bárbaros que já foi um califado mas mantém agora apenas bolsões na Síria.
Credita-se o sucesso dos rebeldes ao enfraquecimento dos dois sustentáculos do al-Assad — a Rússia (onde ele, a mulher Asma e outros se asilaram), e o Irã, braços decisivos a favor do governo na guerra civil. Enredado no conflito da Ucrânia, Vladimir Putin removeu boa parte do pessoal de apoio ao ditador, embora tenha ainda bases, aviões e armas no interior e no Mediterrâneo, para os quais tenta negociar uma saída. O Irã, por sua vez, perde um corredor essencial para treinar e armar milícias anti-Israel e, depois de ver ruir dois grupos sob seu guarda-chuva — o Hamas na Faixa de Gaza e o Hezbollah, que atuava no Líbano como um Estado dentro do Estado —, perde com a Síria mais uma ponta de seu combalido “eixo de resistência” contra inimigos variados. “Os iranianos sofreram uma derrota estratégica que pode mudar o curso do Oriente Médio”, afirma Scott Lucas, professor de política internacional da University College Dublin.
Mais sorte, na investida-surpresa, teve a Turquia, inimiga dos curdos a oeste da Síria, que apoia os rebeldes do leste — embora não se saiba até que ponto ela exerce influência sobre o HTS. No olho do furacão, Israel, por via das dúvidas, instalou comandos nas Colinas de Golã (território que é supostamente neutro, mas onde circula à vontade) e despejou toneladas de bombas sobre alvos sírios. No balanço de seu comando militar, destruiu helicópteros, aviões, arsenais de armas convencionais e químicas e “toda a Marinha síria”, para que não caíssem em mãos dos potenciais inimigos que tomaram Damasco. Mesmo com o futuro no ar, milhares de sírios há anos acampados em tendas na fronteira com a Turquia começaram a empreender o caminho de volta para casa, torcendo por uma transferência pacífica de poder, algo raro de ver no Oriente Médio.
Publicado em VEJA de 13 de dezembro de 2024, edição nº 2923