Era uma vez uma bela plebeia que trilhou o caminho do altar ao lado de um príncipe em cerimônia envolta em pompa e todo o encantamento que a circunstância desperta. Naquele nem tão distante assim maio de 2018, a realeza britânica, a mais abastada e popular do planeta, acreditava estar fincando um decisivo cetro nos tempos modernos. O noivo era o príncipe Harry, neto da rainha Elizabeth II, que se casava com a californiana Rachel Meghan Markle, de 36, mestiça, divorciada e atriz conhecida pela série Suits. Se fosse outro o momento da história, provavelmente o casório seria atropelado pela tradição e não sairia, mas este foi regiamente abençoado pela soberana, ciente de que a perenidade da monarquia depende de algum frescor. O conto de fadas, porém, desandou. E o reino tremeu.
Foi pelo onipresente Instagram que Meghan e Harry comunicaram que se afastariam do Palácio de Buckingham, passando a dividir-se entre o Frogmore Cottage, sua residência, a 40 quilômetros de Londres, e o Canadá. Portanto, não mais desempenhariam em tempo integral funções inerentes à alta cúpula real — aparecer em atos públicos, sorrir, dar uma declaração aqui, outra ali — e passariam a ser “financeiramente independentes” (as aspas são do próprio casal, mas valem para relativizar a ideia de independência, já que eles devem continuar a receber polpuda mesada de Charles, o pai dele). De acordo com os tabloides ingleses, sempre eles, a rainha, que vinha empurrando o pleito do neto com a barriga, estrilou. Na segunda-feira 13, uma reunião em que ela, o filho Charles e os irmãos William e Harry estiveram presentes pavimentou o caminho para o movimento batizado de “Megxit” — uma alusão ao Brexit, o enrolado divórcio entre o Reino Unido e a União Europeia.
Como é de praxe em anúncios com poder de chacoalhar as placas tectônicas do castelo, muitas teorias surgiram para explicar a decisão de Meghan e Harry, que se limitaram a expressar o desejo de criar o filho Archie, de 8 meses, com mais liberdade. Entre as várias correntes de especulações, sobressaíram as de que 1) ela teria convencido o marido a se afastar porque já estava farta do assédio da imprensa, que a rotulou de difícil, perdulária e ainda lançou em seu colo a responsabilidade pelo distanciamento de Harry e William; 2) a iniciativa teria partido dele, que afirmou mais de uma vez não querer “jogar o jogo que matou a minha mãe”, Diana, vítima de um acidente de carro enquanto fugia dos paparazzi; 3) Meghan se sentia alvo de racismo; e 4) o casal queria o bônus, mas não o ônus do posto. Em outras palavras, todo o status e dinheiro (ainda que indiretamente) que a Casa de Windsor proporciona, mas sem a entediante lista de tarefas que engessa a vida dos royals.
Sempre que um deles rasga o figurino que lhe é reservado por tradição secular, como fizeram Harry e poucos outros antes, levanta-se uma questão muito afeita ao dias de hoje: o que justifica a persistência contemporânea de uma instituição como a monarquia, que se mantém à custa de muito dinheiro público e, na maioria das vezes, é meramente figurativa? Como conviver com a ideia de que uma família é mais importante que as demais? A primeira resposta pode ser encontrada nas pesquisas de opinião, que, uma atrás da outra, conferem aos Windsor aprovação que nenhum político jamais desfrutou por tantas décadas. De acordo com o mais recente levantamento, do Opinion Research, a monarquia inglesa é benquista por 63% dos súditos, que são ainda mais generosos com a rainha: ela agrada a 70% do reino (Charles, que amarga longa espera na fila da sucessão, faz baixar a média, patinando em 40% no gosto popular). “Em geral, mesmo quem não é monarquista no Reino Unido fica feliz em ser representado pela nobreza da Casa de Windsor no lugar de tantos políticos sem decoro”, observou a VEJA a inglesa Sarah Gristwood, biógrafa da realeza.
As várias ondas modernizantes da história ofereceram às monarquias o desafio da sobrevivência — e quem soube acompanhar os ventos manteve seu reino. “O mais antigo é o da Casa Imperial do Japão, cuja origem remonta ao ano de 660 a.C. e se fia na ideia de que seus membros descendem da Deusa do Sol”, lembra a historiadora Astrid Beatriz Bodstein. Realezas europeias de países como Portugal, Espanha, França e Inglaterra se constituíram entre os séculos XII e XV, com monarcas todo-poderosos. Em 1689, a Revolução Gloriosa inglesa podou os poderes do rei e o submeteu ao Parlamento, dando assim início ao sistema parlamentarista como vigora até hoje. Pois o que poderia soar como o começo do fim da Coroa representou justamente o oposto. “Ao distanciar os monarcas do centro do poder, a Inglaterra garantiu sua longevidade”, explica o historiador Paulo Rezutti. Exatos 100 anos depois, a Casa dos Bourbon, na vizinha França, receberia a conta da intransigência: acabou ceifada do trono pela Revolução Francesa.
No livro A Constituição Inglesa, Walter Bagehot ilumina um aspecto interessante: segundo o raciocínio de Bagehot, a realeza britânica sempre andou célere, firme e forte porque, no fim das contas, acabaria por reforçar o capitalismo ao funcionar “como uma cola em uma sociedade dividida em classes antagônicas, de modo a desviar a atenção das massas das fontes reais de poder”. E assim tem sido. A Casa de Windsor é chamada de “a firma”, tal é seu poder de produzir libras esterlinas. Um exercício hipotético feito pela Brand Finance, uma das maiores empresas mundiais de avaliação de negócios, situa a monarquia inglesa entre as marcas mais valiosas do planeta: fica atrás apenas da Apple e do Google, na ordem de 360 bilhões de reais, contabilizando-se ativos tangíveis (imóveis, ducados, joias etc.) e intangíveis (o que consegue atrair para a economia da Inglaterra em turismo, por exemplo). Diante de tantas casas decimais, os 440 milhões de reais que a realeza draga das finanças públicas parecem acanhados — esse, aliás, é um argumento muito usado para justificar sua existência.
No curso da história, os Windsor vêm tentando se equilibrar na delicada linha que separa tradição de modernidade, em um esforço para manter aceso o que o pensador escocês Tom Nairn definiu, argutamente, como “o glamour do anacronismo”. Até 2011 os herdeiros homens furavam a fila da sucessão, regra que não existe mais e instalaria Charlotte, 4 anos, a filha de William, atrás de Louis, 1 ano. Foi só em 2002 que a Igreja Anglicana permitiu o casamento de divorciados “em circunstâncias excepcionais”, a ser definidas pelo monarca. Na década de 50, a mesma rainha Elizabeth que deu aval ao enlace de Meghan e Harry negou o pleito da irmã Margaret (vivida na terceira temporada da série The Crown pela competente Helena Bonham Carter). Ela queria trocar alianças com um oficial da corte separado. Bem antes, em 1936, o rei Edward VIII também não foi atendido quando pediu para se casar com Wallis Simpson, americana e divorciada, exatamente como Meghan. Não custa lembrar que ele abdicaria do trono, cedido ao pai de Elizabeth, o rei George VI, no maior escândalo protagonizado pela realeza britânica na era moderna.
Sempre que a monarquia parece sintonizada com o barco da história, sua popularidade sobe, assim como a cegueira a faz encolher, em uma gangorra constante. Na II Guerra, George VI conseguiu recuperar a imagem dos Windsor manchada pelo irmão ao sujar o pé de lama em acampamentos militares e nunca deixar Londres quando a cidade era bombardeada pela força aérea nazista. “Uma das razões para a permanência da instituição monárquica é que, em períodos de incerteza, ela representa a estabilidade”, diz o historiador Peter Mandler, da Universidade de Cambridge. Diferentemente do pai, Elizabeth encabeçou um capítulo infeliz ao se mostrar alheia ao luto dos súditos com a trágica morte da ex-nora Diana em um acidente de carro, em 1997.
Ao mesmo tempo que se mantêm aferrados a tradições seculares, os royals eventualmente descem do pedestal, e isso os ajuda. Diana foi a primeira a aparecer como mãe de carne e osso, espontânea com os filhos, estilo copiado por Kate Middleton, a mulher de William, convenientemente flagrada de jeans e camiseta dando bronca de gente comum nos rebentos. Meghan envereda por esse caminho de maneira ainda mais radical: depois de anunciar o nascimento do filho no Instagram, não posou para a tão aguardada foto pós-parto e só mostrou o bebê dois dias depois. Nem título de nobreza Archie tem. Ele só seria visto novamente cinco meses mais tarde, numa viagem à África do Sul em que Meghan e Harry expuseram sua insatisfação em um documentário do canal britânico ITV, gravado in loco. Na ocasião, a princesa de Sussex desabafou, ao ser questionada se estava bem: “Obrigada. Não é comum me perguntarem se estou bem”, disse, com os olhos visivelmente marejados.
Ainda não se sabe se o casal preservará o título nobiliárquico, mas, pelo sim, pelo não, já registrou a marca Sussex. Especialistas estimam que no primeiro ano ela pode alavancar um faturamento equivalente a 2,6 bilhões de reais com livros e produtos licenciados (situação em que o montante que lhes é destinado pela rainha, do qual abriram mão, não fará falta). Os tabloides, de novo eles, bisbilhoteiros mas bem informados, afirmam que Meghan e Harry estão sendo assessorados por Barack e Michelle Obama, notáveis na arte de converter o prestigiado sobrenome em renda. Ao deixarem a posição de funcionários públicos do reino, os Sussex não fazem nada diferente de outras realezas que souberam suavizar as atribuições dadas aos que não são herdeiros diretos do trono. Na Suécia, dos sete netos do rei Carlos Gustavo, apenas dois com chances de portar a coroa vivem atrelados à agenda real; os demais estão livres para trabalhar. A brecha aberta pelo Megxit pode, no final, significar um passo a favor do reino. E a monarquia do Reino Unido, pelo visto, viverá feliz para sempre.
Publicado em VEJA de 22 de janeiro de 2020, edição nº 2670