Incertezas e nós logísticos dificultam a vida dos refugiados ucranianos
Na guerra, 8 milhões empreenderam migrações internas e mais de 6,5 milhões cruzaram a fronteira, já quase alcançando o êxodo na Síria
Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, lá se vão três meses, o mundo vem assistindo a um drama humanitário que racha famílias e obriga multidões a deixar para trás, de uma hora para outra, seus pertences e raízes. As cenas de mulheres, velhos e crianças amontoados nas fronteiras, movidos pelo desespero de escapar das bombas que ceifam a vida de milhares de pessoas, compõem um subproduto da perversa guerra que ninguém imaginava durar tanto. Um recém-divulgado relatório do Acnur, a agência das Organização das Nações Unidas que trata de refugiados, dá a impressionante dimensão dos deslocamentos de ucranianos em busca da sobrevivência: 8 milhões empreenderam migrações internas e mais de 6,5 milhões cruzaram a fronteira, já quase alcançando o êxodo na Síria, palco do conflito que mais produziu refugiados no século XXI — 6,6 milhões. E essa onda tão veloz e em tão larga escala começa a cobrar o seu preço.
Muitos que se foram da Ucrânia — ao todo 15% dos 44 milhões de habitantes até agora — ainda estão acampados em instalações improvisadas ou mesmo no meio da rua nos países que lhes abriram as portas com rara boa vontade. O destino preferencial é a vizinha Polônia, para onde se despencou um contingente de 3,5 milhões, de longe o mais volumoso. Depois, vêm outras nações da Europa Oriental coladas à Ucrânia, como Romênia, Hungria, Moldávia, Eslováquia — todas ex-integrantes do bloco soviético que deixaram a Rússia cheias de rancor e liberaram de bom grado a entrada dos refugiados. O fluxo repentino mudou a paisagem de cidades como a polonesa Rzeszów, a menos de 100 quilômetros da ucraniana Lviv, a principal rota de escape no lado oeste. Em Rzeszów, de repente, a população de 200 000 inflou 50%, sem que houvesse nenhum preparo nem verbas extras. “Não temos mais espaço para um único indivíduo e eles continuam a chegar”, relata o prefeito Konrad Fijołek. Na capital, Varsóvia, a estação de trem segue abarrotada, impondo a quem perdeu tudo um cotidiano sem horizonte.
A União Europeia decidiu conceder aos ucranianos direito a visto, moradia e trabalho por três anos, mas a medida vem se revelando difícil de implantar, dada a escala da demanda. Neste momento, as autoridades tentam criar sistemas de assistência mais sólidos, mas, ainda que corram contra o relógio, não há como superar o ritmo do maciço desembarque de refugiados. Ele é tão intenso que já se reflete inclusive na demografia — quase 10% das crianças na Polônia são recém-egressas da Ucrânia. Em Portugal, os ucranianos passaram a ocupar o segundo lugar entre os estrangeiros, atrás apenas dos onipresentes brasileiros. Curioso notar em Lisboa a presença de placas em lugares públicos escritas no alfabeto cirílico. Alguns países concedem ainda uma ajuda em dinheiro, uma mola de atração de refugiados para a Alemanha, por exemplo, onde eles já atingem a marca de 700 000, de acordo com o levantamento do Acnur.
Quando, bem no princípio, alojar ucranianos em casa estava no plano das ideias, parecia simples e edificante. O Reino Unido logo lançou o programa Homes for Ukraine, através do qual famílias britânicas recebem os refugiados, e choveram voluntários. Agora, organizações não governamentais relatam o arrependimento de uma parcela dos anfitriões, que entendeu na prática o peso de ter sob seu teto pessoas que carregam o trauma recente da migração forçada e está voltando atrás. Resultado: um crescente aumento de ucranianos em abrigos temporários ou nas ruas inglesas. “Fico pensando se minha casa está de pé, se entraram para roubar o que tinha dentro e se um dia vou poder voltar para lá”, desabafa a designer de interiores Elizabeth Drobot, 26 anos, que, em reportagem de VEJA publicada em 16 de março, se dizia em dúvida se atravessaria a fronteira. Atravessou, depois de bombas arrasarem oito casas em sua própria rua, nos arredores de Kiev, engatando uma jornada de quinze angustiantes dias. Hoje está na Holanda com os irmãos.
Sem trégua à vista, a Rússia, depois do fracasso na ofensiva à capital ucraniana Kiev, capturou a duras penas a cidade de Mariupol e agora se concentra na porção leste do país, região conhecida como Donbas, onde separatistas pró-Rússia atuam desde 2014. Foi justamente ali que a guerra começou, sob a falsa alegação do presidente Vladimir Putin de que estaria protegendo a população de milícias nazistas. “Conforme o conflito avança, recursos de todo tipo para receber refugiados vão escasseando”, alerta Julian Vierlinger, pesquisador do think tank americano Atlantic Council e voluntário da Cruz Vermelha na fronteira polonesa. Já foram distribuídos aos países da UE 3,5 bilhões de euros para acolher os ucranianos. Enquanto o conflito se arrasta, eles não param de chegar, protagonizando travessias dolorosas que, em seu conjunto, descrevem um triste capítulo da história.
Publicado em VEJA de 1 de junho de 2022, edição nº 2791