No início de julho, o presidente e líder separatista da Catalunha, Carles Puigdemont, anunciou oficialmente a realização de um referendo sobe a independência da região do resto da Espanha, a ser realizado em 1º de outubro. A consulta popular enfrenta forte resistência do governo central e é vista por grande parte da imprensa e do país como “um delírio” que, além de ilegal, nunca vai se concretizar. Porém, em tempos de Brexit e fortalecimento acentuado dos movimentos nacionalistas na Europa, o medo da separação catalã ainda paira sobre o continente.
Os principais líderes da União Europeia decidiram não tomar partido na questão, que acreditam ser exclusivamente doméstica. O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, no entanto, assegurou na semana passada que em caso de separação da Espanha, a Catalunha sairia automaticamente do bloco.
O governo de Mariano Rajoy, primeiro-ministro espanhol, argumenta que um referendo para decidir sobre a independência de qualquer uma das regiões do país é ilegal e vem usando o instrumento jurídico para impedir sua realização. Essa é a posição de Madri desde 2014, quando outra tentativa de consulta popular acabou com a perda por dois anos do mandato público eletivo do presidente catalão da época, Artur Mas, e a anulação da votação por conta do baixo comparecimento às urnas – somente 37% da população participou do referendo.
A Constituição espanhola, aprovada por 90% dos eleitores catalães em 1978, concede grande autonomia às regiões do país e se refere à Catalunha como “nacionalidade histórica”, além de reconhecer seu direito à autonomia. No entanto, afirma a “indissolúvel unidade da Espanha” e proíbe a realização do referendo.
Ainda assim, o governo catalão insiste que a reivindicação é legítima e pretende declarar a sua separação nas primeiras 48 horas após vitória na votação. Além disso, usa a conquista da maioria absoluta dos assentos no Parlamento local (72 deputados independentistas de um total de 135) nas últimas eleições para legitimar o referendo.
“Se produz assim um contraste clássico entre uma legitimidade constitucional e uma legitimidade democrática que nem as leis, nem os autores políticos atuais parecem capazes de superar”, diz o professor de ciência política na Universidade Pompeu Fabra, o espanhol Lluis Ferran Requejo. O conflito é acentuado pela posição inflexível de Puigdemont e seu gabinete, que insistem em realizar o referendo em outubro, sem qualquer possibilidade de alteração ou prorrogação da data.
Por que a Catalunha quer a independência?
Os impulsos pela independência existem desde o século XIX, mas cresceram de forma contundente a partir do ano de 2010 até conquistarem aproximadamente metade da população regional. Atualmente, entre 45 e 55% dos catalães querem a independência e algumas das principais razões para o movimento são econômicas.
A região do nordeste da Espanha é uma das mais ricas do país, responsável por aproximadamente 20% do PIB nacional. Existe uma crença incentivada pelos separatistas segundo a qual os cidadãos gastam mais com o governo central do que recebem de volta. De fato, a Catalunha é a região que mais paga impostos e cujo custo de vista é um dos mais caros do país. Porém, segundo os informes oficiais da vice-presidência e do Departamento de Finanças Nacional, a região “paga em impostos (19%) o mesmo que contribui para o PIB (19%) e recebe uma quantidade (15,08%) próxima a sua porcentagem da população (16%)”. O argumento não é aceito por muitos dos principais representantes separatistas.
Além disso, a crise dos últimos anos e alguns casos de corrupção ajudaram a impulsionar o grande descontentamento com a política.
O convívio cada vez mais agressivo entre o governo catalão e o espanhol também é visto como um motivo para o desmembramento. “Se a independência for colocada em prática, depois de alguns poucos meses de tensão, a relação pode ser melhor que a atual, com um tratamento bilateral baseado em uma posição de igual dignidade política”, diz o professor de sociologia da Universidade Autónoma de Barcelona e membro do Conselho Consultivo do Governo de Transição Nacional da Catalunha, Salvador Cardús.
Muitos cidadãos também acreditam que a região não recebe tratamento justo e compatível com seus status autônomo da administração central. “As relações já estão muito desgastadas e não vejo mais possibilidade de retomar ou recriá-las. Os vínculos econômicos, políticos e culturais são insustentáveis”, diz a professora natural de Barcelona Pilar Pozuelo.
Porém, diferente do impulso nacionalista e populista que cresce no Reino Unido, França e outros países europeus, o independentismo catalão é também um movimento cultural. Muito se fala, inclusive, sobre o chamado catalanismo, uma necessidade dos cidadãos da região em se diferenciarem do resto do país e exaltarem seus costumes e lendas próprias para o resto do mundo.
Em Barcelona, os símbolos nacionalistas estão por toda parte, inclusive em sua arquitetura modernista única. A cruz de São Jorge, personagem religioso cristão exaltado como o cavaleiro corajoso que no passado salvou a princesa e a cidade contra a invasão de um dragão, é estampada em monumentos, prédios e igrejas. O monstro da lenda espanhola é associado especialmente à figura do estrangeiro que deseja acabar com sua liberdade e autonomia.
Nas ruas, estradas e estações de metrô, se lê o catalão sempre em primeiro lugar. A língua é a oficial da região, junto ao castelhano. Com o fim do regime ditatorial de Francisco Franco, em 1975, e a restauração da democracia em todo o país, o idioma passou a ser usado na política, educação e nos meios de comunicação.
Porém, nem todos os moradores compartilham do sentimento nacionalista. É o caso da auxiliar administrativa Marigel Bueudía, que vive na Catalunha há 32 anos. “Compreendo a ação dos independentistas, mas não me identifico. Creio que seus motivos sejam mais econômicos e políticos atualmente do que qualquer coisa”, diz.
O referendo vai acontecer?
De acordo com as últimas pesquisas de opinião, a grande maioria da população catalã é favorável à realização da consulta popular, mesmo que não apoie a independência. “Se o Estado permitir que o referendo se realize legalmente, em toda a Espanha, porque não? Mas fazer uma votação unilateral e alternativo é burlar o sistema”, diz Marigel.
Porém, a opinião de grande parte dos especialistas é de que a realização de uma votação legítima, legal e organizada até outubro não passa de um sonho impossível. Há muitas questões burocráticas a serem resolvidas, como arrecadações de fundos, compra de urnas e organização das forças policiais e outras formas de segurança.
Além disso, ao que tudo indica faltarão padrões de reconhecimento internacionais. “O referendo não cumpre os padrões internacionais para sua realização com garantias e viola o direito de voto e participação política de todos os espanhóis”, diz a professora de direito internacional da Universidade Autónoma de Barcelona (UAB) e ex-presidente da Societat Civil Catalana, organização contrária ao independentismo.
O movimento catalão e o nacionalismo separatista europeu
À semelhança da Catalunha, a Escócia também vive uma forte campanha interna para a separação de seu território do Reino Unido. O movimento nacionalista local quer retornar à sua condição de autonomia de 1707, quando passou a fazer parte da união política.
Nos dois casos, há uma clara insatisfação popular com a falta de políticas ou mecanismos legais internos que permitam ao governo reconhecer o pluralismo nacional e, dessa forma, conceder mais autonomia às administrações regionais. “No entanto, a situação da Catalunha é a que demonstra os maiores déficits de reconhecimento, tanto em termos liberais como democráticos”, diz Ferran Requejo, da Universidade Pompeu Fabra.
Desde a aprovação em referendo da saída do Reino Unido da União Europeia, os escoceses viram a oportunidade de concretizar sua reivindicação. O Parlamento local já aprovou a realização de uma consulta popular interna sobre a independência, mas assim como na Catalunha parece muito improvável que a votação ocorra com o apoio do governo central. Além da Escócia, outros dois territórios britânicos resistem movimentos em prol de maior autonomia: País de Gales e Irlanda do Norte.
Dentro da Espanha, outro impulso semelhante também ganhou força anos atrás. O País Basco, localizado na região norte, busca sua separação desde 1959. O grupo terrorista ETA (sigla para País Basco e Liberdade) conduziu uma luta armada pelo desejo de independência dos espanhóis e dos franceses (os territórios de Baixa Navarra, Lapurdi e Zuberoa estão localizados no outro país europeu) até 2011, quando anunciou o fim do conflito. Apesar do desaparecimento da organização como ator político e agente de violência, o sentimento separatista ainda persiste, propagado por alguns partidos políticos e candidatos nacionalistas.