Nação de superlativos, a Índia impôs em março a mais ferrenha quarentena de todo o mundo. Por ordem do primeiro-ministro, Narendra Modi, o 1,3 bilhão de habitantes do país teve alguns dias para se preparar — o que incluiu um enorme êxodo das cidades para o interior — e se fechar em casa, com a polícia brandindo bastões e fazendo ameaças contra eventuais contraventores. A medida fazia sentido: com uma vasta população de miseráveis vivendo nas ruas e serviço de saúde abaixo da crítica, temia-se que o avanço da pandemia atingisse proporções apocalípticas. Aí, muito antes do recomendável, o governo deu para trás. Com contágio e mortes ainda em plena aceleração, Modi, líder autoritário e ultranacionalista que não é de ouvir conselhos e tinha pressa em reativar a economia, anunciou no início do mês o fim do confinamento obrigatório. “A transmissão está sob controle”, proclamou, recomendando a prática de ioga como estratégia “para aumentar a imunidade”.
Desde então, a Índia chegou à dolorosa posição de epicentro da epidemia na Ásia e os casos confirmados vêm dobrando a cada dezoito dias — mais do que nos Estados Unidos, Brasil e Rússia, os campeões de contaminação. “Se a velocidade do surto persistir, o país deve passar as estatísticas americanas em seis semanas”, prevê Ashish Jha, professor de saúde global da Universidade Harvard. A maior cidade, Mumbai, com 18 milhões de habitantes, é o epicentro nacional: tem 68 000 casos e 3 800 mortes. A capital, Nova Délhi, vem logo atrás, em posição particularmente preocupante: deve ultrapassar Mumbai nos próximos dias e multiplicar o número de infectados por oito até o fim de julho. Esse cenário trágico exigiria 150 000 leitos disponíveis nos hospitais. Só existem 10 000, e o governo prepara a toque de caixa 500 vagões de trem para funcionar como hospitais de campanha.
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Clique e AssineSegundo fontes médicas, os números oficiais não são confiáveis. Centros de saúde estão proibidos de realizar testes em pacientes que morrem com suspeita de Covid-19. Além disso, por ditames ligados à religião hindu, 80% das mortes ocorrem em casa e os corpos são cremados pela família. “A maquiagem nas estatísticas pode garantir popularidade no curto prazo, mas trará enorme prejuízo humano”, diz o epidemiologista Ramanan Laxminarayan, do Center for Disease Dynamics, Economics and Policy, de Washington. A instituição prevê que, sem uma correção de rota, a Índia pode somar 200 milhões de infectados até setembro.
A reabertura precoce está diretamente relacionada à crise econômica desencadeada pelo coronavírus. O fechamento abrupto do setor produtivo em março provocou um encolhimento da renda de proporções colossais, já que 90% dos indianos trabalham no mercado informal e não têm acesso a seguro-desemprego ou rede de saúde pública. O governo só começou a se mexer em maio, quando anunciou um pacote de ajuda de 270 bilhões de dólares, mas o estrago estava feito. Segundo relatório do banco Goldman Sachs, a economia deverá encolher 45% no segundo trimestre e fechar 2020 em queda de 12%.
A falta de planejamento e a verborragia ao longo da pandemia são marcas registradas de Modi, primeiro-ministro populista que fala às massas com seu discurso de valorização do hinduísmo e, em 2019, teve o mandato renovado por cinco anos com confortável maioria. O maior empenho de seu governo tem sido reprimir os indianos muçulmanos, parcela historicamente discriminada que soma 14% da população. A tensão sectária se acirrou após Modi aprovar, em fevereiro, uma lei que facilita a concessão de cidadania a refugiados dos vizinhos Afeganistão, Paquistão e Bangladesh — desde que não sejam muçulmanos. A resolução provocou conflitos de rua, incêndios e choques, com saldo de 24 mortos e 189 feridos. Intensificaram-se, assustadoramente, nos últimos tempos os atritos de fronteira com a vizinha China. É nesse aglomerado barril de pólvora, alimentado pela pobreza extrema e movido a ultranacionalismo, que a pandemia agora abate o país com toda a força. É um pavio preocupante.
Publicado em VEJA de 1 de julho de 2020, edição nº 2693