Quando todo mundo aguardava uma vitória acachapante da aliança entre direita e extrema direita, como havia acontecido em votações regionais dois meses antes, os espanhóis surpreenderam: no resultado final da eleição para o Parlamento no domingo 23, o Partido Popular, de linha conservadora, de fato conquistou a maior bancada, mas seu parceiro natural, o ultranacionalista Vox, encolheu de 53 para 32 cadeiras, minando as chances de o líder do PP, Alberto Núñez Feijóo, conseguir maioria para formar um novo governo. Ao que tudo indica, os espanhóis ainda têm na memória os abusos cometidos pela ditadura franquista, deposta nos anos 1970, e preferiram não dar voz ativa nos rumos da nação a seus herdeiros — exatamente o que o primeiro-ministro Pedro Sánchez, do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) esperava ao antecipar a ida às urnas. Em meio à indefinição, tanto ele quanto Núñez agora arregaçam as mangas para tentar, em um prazo de dois meses, formar alguma aliança com chance de ser aprovada pelo Parlamento.
O tropeço na hora do vamos ver do Vox de Santiago Abascal, dissidente do PP que exalta a “reconquista” (termo usado para definir a expulsão dos muçulmanos da Península Ibérica) e promete erguer um “muro intransponível” em Ceuta e Melilla, os dois enclaves espanhóis no norte da África que são ponto de passagem de imigrantes para o continente, foi inesperado e embaraçoso para a legenda. Mas ele não é suficiente para anular a trajetória ascendente do partido, hoje o terceiro maior do país, e muito menos para afetar o avanço da extrema direita na Europa inteira, insuflado por um novo fantasma a rondar o continente — não mais o comunismo citado por Marx e Engels na abertura de seu célebre manifesto, mas as hordas de imigrantes vindos, sobretudo, do norte da África. A bandeira anti-imigrantes não é exclusiva dos radicais — ela foi abraçada pelos conservadores em geral e até por partidos moderados, conectados à insatisfação do eleitorado com a invasão recorde de africanos e árabes: nos quatro primeiros meses deste ano, foram 80 700 tentativas, o maior número já aferido no período.
Em circunstâncias normais, conter a imigração faria parte do discurso dos conservadores para derrotar nas urnas os progressistas, em mais um movimento esperado e usual do pêndulo político. Na Europa, porém, esse saudável revezamento está abrindo brecha para a infiltração nos governos de uma extrema direita raivosa e intolerante, empenhada em desfazer conquistas e empurrar a sociedade para trás. “A imigração pauta eleições Europa afora”, avalia Manuel Villoria, professor de ciência política da Universidade Rey Juan Carlos. A questão pegou fogo (literalmente) em junho, nos saques e vandalismo que compuseram os protestos na França após a morte de um jovem de ascendência argelino-marroquina nas mãos da polícia. Na Itália, governada por Giorgia Meloni, cria de um movimento neofascista, o Ministério do Interior considerou a baderna “uma prova do fracasso da imigração descontrolada”. Pesquisa na França mostrou que a ultradireitista francesa Marine Le Pen, defensora de controles rígidos da imigração, que disputou (e perdeu) a Presidência com Emmanuel Macron, hoje venceria a eleição com vantagem de 10 pontos percentuais.
A falta de integração de parte da comunidade imigrante, sobretudo dos jovens, à sociedade que os recebeu, seja por falta de oportunidades, intolerância religiosa ou ressentimento mútuo, acirra os ânimos em toda a Europa. Ciente da enormidade do problema, a União Europeia decidiu no início de junho reformular a chamada convenção de Dublin, segundo a qual entradas ilegais eram problema dos países onde elas ocorriam — notadamente Grécia e Itália. O novo texto determina que cada um dos 27 estados-membros terá de acolher pelo menos 30 000 refugiados por ano. Aos países na linha de frente cabe montar campos e processar pedidos de asilo, confirmando seu indesejado papel de guardas de fronteira. Em paralelo, Meloni e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em improvável parceria, assinaram com Kais Saied, presidente da Tunísia — hoje o principal ponto de partida de imigrantes que fazem a perigosa travessia para a Europa pelo Mar Mediterrâneo —, um acordo em que ele se compromete a reter o fluxo em troca de 255 milhões de euros. Troca-troca semelhante foi alcançado com o Marrocos, por 152 milhões de euros, com a Líbia, por 60 milhões, e com a Turquia, por 6 bilhões.
A medida é controvertida: não toca no problema dos miseráveis capazes de tudo para chegar ao continente europeu e pouco interfere nos maus-tratos a que são submetidos nos chamados países de trânsito. Mas é vista, ao menos, como um gargalo que reduzirá a incessante e trágica mortandade no Mediterrâneo — em junho, em um dos maiores desastres locais, uma embarcação com 700 a bordo virou em águas gregas, deixando 81 mortos comprovados e mais de 500 desaparecidos. “Tragédias só serão evitadas se a União Europeia trocar o foco em fechar fronteiras por ação humanitária”, alerta Gemma Bird, professora de relações internacionais da Universidade de Liverpool. Fora da União Europeia, o Reino Unido, que deixou o bloco bradando contra a imigração exagerada e viu o número de ilegais que atravessam o Canal da Mancha bater recorde de 45 000 em 2022, está negando asilo a quem quer que chegue à ilha dessa forma e até requisitou um navio com capacidade para 500 passageiros para alojar detidos à espera de deportação.
Do outro lado do Atlântico, os Estados Unidos também adotam políticas mais rígidas — a ponto de a Justiça estar bloqueando parte delas — e usam o México, mais um país de trânsito, para interceptar e diluir o fluxo migratório. Nas beiradas da rota da imigração, o bloco da extrema direita vai crescendo e se multiplicando. Na Holanda, onde as tensões com estrangeiros inflaram três partidos ultranacionalistas, o primeiro-ministro (moderado) Mark Rutte está demissionário — seu projeto de duros controles foi derrotado. Na Alemanha, a sigla radical AfD fez sua estreia no Executivo elegendo o prefeito de uma pequena cidade da Saxônia e, em algumas regiões, está à frente do Partido Social Democrata, do chanceler Olaf Scholz, nas pesquisas. A influência do Partido dos Finlandeses — o mais à direita na história do país — na coalizão do primeiro-ministro Petteri Orpo ficou evidente nos cortes de cotas e benefícios sociais para refugiados aprovados em troca de apoio a um projeto de redução de gastos.
A extrema direita também se tornou o fiel da balança de poder na Suécia, embora não faça parte do governo. Brandindo a “ameaça” da corrente migratória, a linha ganha terreno e aproveita para tocar suas outras pautas, como a revisão de conquistas da comunidade LGBTQIA+ — a Itália de Giorgia Meloni acaba de aprovar uma lei que impede que o sobrenome da mãe não biológica seja adicionado ao nome dos filhos de pares de lésbicas, em prol da “família tradicional”. De retrocesso em retrocesso, os extremistas vão ganhando força e fechando portas a ideias e pessoas de fora.
Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2023, edição nº 2852