Irlanda: como o braço político do IRA ganhou a eleição
Durante quase um século, o Sinn Féin foi uma sigla nanica acorrentada ao estigma de sua ligação com terroristas; agora, ela venceu
Os irlandeses são um povo de longa e bem preservada memória. Há quase um século, desde que dois terços de sua ilha se separaram da Grã-Bretanha para formar a República da Irlanda, dois partidos quase iguais, o Fianna Fáil e o Fine Gael, se revezam no poder, ambos vindos da ala do movimento separatista que aceitou a exigência britânica de manter uma faixa de terra, a Irlanda do Norte, sob seu controle. Os militantes do contra, por seu lado, formaram o Sinn Féin, que viria a se tornar o braço político do temido Exército Republicano Irlandês (IRA), um grupo terrorista que durante quase três décadas promoveu atentados a bomba que mataram cerca de 3 500 pessoas. Um acordo de paz pôs fim às ações violentas em 1998 e, sete anos depois, o IRA formalmente depôs as armas e foi extinto. Nada disso mudou o estado das coisas na política irlandesa.
A centro-direita continuou a governar, ora com um, ora com outro partido, e o Sinn Féin, mais à esquerda, seguiu amargando o estigma da ligação com os radicais do IRA e a posição de nanico entre as agremiações. De repente, a reviravolta: na eleição de sábado 8, o Sinn Féin surpreendeu todo mundo e saiu vencedor, com 24,5% dos votos. “Ele se beneficiou sobretudo dos votos dos jovens que não eram nascidos no período em que o IRA atuava e, portanto, não lhe fazem tanta restrição”, diz Niamh Hardiman, professora de ciências políticas da University College Dublin.
O principal fator apontado para a derrota dos partidos tradicionais é a escassez de moradias por que passa a Irlanda. Depois de mergulhar em uma profunda crise econômica em 2009, o país se recuperou e progride como poucos na Europa, mas esse aquecimento resultou em um salto dos aluguéis de até 40% nos últimos três anos e em um aumento constante no número de sem-tetos — que o Sinn Féin promete amenizar investindo imediatamente 6,5 bilhões de euros na construção de 100 000 casas. O sistema de saúde, um orgulho nacional, foi afetado pelo corte de custos do governo e está sobrecarregado. Por fim, a concretização do Brexit não prevê como a fronteira entre a Irlanda (que é da União Europeia) e a Irlanda do Norte (que deixou de ser) permanecerá sem controle algum — uma cláusula do acordo de paz. Esse cenário fez aumentar a insatisfação com os políticos no poder.
O Parlamento acabou dissolvido em janeiro, após uma moção de desconfiança contra o gabinete do primeiro-ministro Leo Varadkar, gay e filho de indianos que prometeu um governo de avanços nos costumes e nos direitos e acabou engolido pela deterioração geral do padrão de vida. No outro lado do ringue, o Sinn Féin se tornou mais palatável quando o líder Gerry Adams, político sobre o qual pairam suspeitas de ter atuado na direção do IRA (ele sempre negou), afastou-se e foi substituído por Mary Lou McDonald, de 50 anos, que deu cara nova e moderna ao partido.
Surpreendido pelo próprio sucesso, o Sinn Féin não apresentou candidatos suficientes para obter maioria no Parlamento e ficou com uma cadeira a menos que o Fianna Fáil (22% dos votos), que estava na oposição. O Fine Gael de Varadkar acabou em terceiro, com 21% dos votos. Começa agora a dura negociação para que se alcance uma coalizão que permita a algum partido assumir o governo. Nada garante que o Sinn Féin será bem-sucedido nessa empreitada, mas, se for, é certo que a reunificação voltará à pauta. “O Brexit complicou o status da Irlanda do Norte, onde 56% do povo votou por permanecer na UE”, diz Simon Fraser, ex-ministro britânico das Relações Exteriores. Em pesquisa recente, 51% dos norte-irlandeses disseram que acham melhor unir-se à república do que acompanhar o Brexit — o maior nível de aceitação da unificação em 100 anos. Na Irlanda, dois terços da população apoiam a ilha unificada. Mesmo que a formação do novo governo acabe nas mãos de um partido tradicional, a vitória do Sinn Féin veio mostrar que o país das memórias imutáveis entra, definitivamente, em um novo tempo.
Publicado em VEJA de 19 de fevereiro de 2020, edição nº 2674