Faltando pouco para o início da Olimpíada de Paris, competição que instalará a França no centro das atenções do mundo, o país passa por um momento de intensa movimentação política, com ondas de choques de interesses que podem durar semanas e ninguém sabe direito onde vão desaguar. Por trás da turbulência está justamente quem mais precisa de ânimos serenos para governar: Emmanuel Macron, o presidente que desencadeou uma tempestade de incertezas ao antecipar, sem necessidade, as eleições legislativas. Ao fim de dois turnos dramáticos, sua coalizão de centro, Juntos, contabilizou 168 assentos na Assembleia Nacional — 82 a menos do que tinha antes. Para aprovar projetos, ele terá que achar um jeito de conviver com a Nova Frente Popular, uma aliança de esquerda formada às pressas que, para surpresa geral, fez 182 deputados e se tornou a maior força parlamentar, demovendo para a terceira posição o Reagrupamento Nacional (RN), que, com 143 cadeiras, viu anulada a vantagem que conseguira abrir no primeiro turno.
Restou a Macron, isolado e encolhido, espernear para se impor em cenário adverso, tal qual Asterix, o gaulês dos quadrinhos que se insurge contra as legiões romanas — sem, no entanto, dar mostras até agora da esperteza do rebelde da ficção. A união de eleitores dos grandes centros, o apelo de celebridades como o jogador de futebol Kylian Mbappé e uma articulação que levou à desistência de mais de 200 candidatos sem chance de ganhar impuseram a derrota ao RN de Marine Le Pen, que já perdeu duas eleições presidenciais e que saíra na frente, com 33% dos votos, no primeiro turno. Na bela Place de la République, no centro da capital, uma multidão festejou mais uma manifestação do “cordão sanitário” que até agora vem impedindo a chegada da extrema direita ao poder — embora a cada votação ela conquiste mais representação. Nem por isso Macron, aparentemente conformado com o derretimento de seu partido mas ainda empenhado em preservar um legado respeitável ao fim de dez anos na Presidência, pode respirar aliviado.
No sistema misto da França, o presidente reparte responsabilidades com um primeiro-ministro, uma espécie de chefe de gabinete que toca o dia a dia do governo. Em geral, ele sai do partido mais votado na Assembleia. Como as eleições legislativas acontecem pouco depois da presidencial, a mesma legenda costuma ocupar os dois postos. Desta vez, com a votação antecipada, o arranjo se desfez — e agora o candidato natural seria Jean-Luc Mélenchon, esquerdista radical que, em sua plataforma polêmica, defende o aumento dos gastos públicos, promete reverter a reforma da previdência que a duras penas elevou a idade de aposentadoria e, no conflito do Oriente Médio, tece elogios ao Hamas. Não há coabitação possível entre eles — Macron passou a campanha desancando os “dois extremos”, à direita e à esquerda, e, de resto, Mélenchon, extremista da velha guarda que nunca foi muito levado a sério, é tão impopular quanto o presidente.
A França entra, assim, em um período de alta instabilidade, ainda mais porque o país, diferentemente dos vizinhos Itália e Alemanha, não tem tradição de criar coligações amplas, formadas por siglas de diferentes linhas ideológicas. “Será uma negociação complexa”, diz Françoise Boucek, do Centro de Pesquisa Europeia da Queen Mary University, de Londres. “A Nova Frente Popular é um arranjo frágil de quatro legendas que não têm um programa comum.” São citados como possíveis opções para o cargo de primeiro-ministro dois socialistas, Olivier Faure, primeiro-secretário de partido, e Raphaël Glucksmann, que se destacou na eleição para o Parlamento Europeu, em junho. Mélenchon, de sua parte, parece disposto a brigar pela posição, causando arrepios na cúpula da União Europeia e nos investidores em geral — o país está sendo pressionado a conter sua imensa dívida pública, muito acima do limite estabelecido pela UE, e o novo orçamento anual, com previsão de cortes de gastos, precisa ser aprovado nos próximos meses. “A França corre risco de viver um grave impasse político, com seu Parlamento dividido e o presidente isolado”, alerta Rym Momtaz, do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos.
Tentando evitar maiores solavancos durante a Olimpíada, Macron rejeitou o pedido de renúncia do atual primeiro-ministro e seu aliado, Gabriel Attal, e adiou a decisão sobre um novo nome para agosto. Seja quem for o escolhido, ele não resolverá o problema maior do governo, que é conviver com a Assembleia Nacional mais fragmentada desde a fundação da Quinta República, em 1958, por Charles de Gaulle (1890-1970). As divergências entre os dois maiores blocos podem, inclusive, servir de munição para a extrema direita avançar com sua bandeira de que o establishment não funciona e precisa mudar. “A maré continuará subindo. Nossa vitória foi apenas adiada”, provocou Le Pen, logo após a divulgação dos resultados, garantido que será a próxima presidente da República, em 2027. Acuado no Palácio do Eliseu, lutando contra tudo e contra todos, Macronix paga o preço de sua ousadia, com a esperança de que o céu não lhe caia sobre a cabeça.
Publicado em VEJA de 12 de julho de 2024, edição nº 2901