Símbolo de segurança e estabilidade no Japão por ter alcançado o feito de permanecer por sete anos e oito meses no poder, depois de um prolongado período em que a duração no cargo não passava de um ano e alguns meses, o primeiro-ministro Shinzo Abe, 65 anos, decidiu deixar a liderança do Partido Democrático Liberal (PDL) — e, por tabela, o comando do governo — um ano antes do previsto, por motivo de doença. “A saúde fraca pode resultar em decisões políticas erradas”, afirmou no discurso de despedida. A troca de poder vai acontecer em um momento crítico para o Japão, hoje uma ilha (na verdade, várias) cercada de problemas.
A gestão inábil e vagarosa da crise provocada pelo novo coronavírus desagradou a todo mundo (embora a disciplina natural da população tenha mantido o contágio em níveis razoáveis), a recessão que já travava a terceira economia do mundo se agravou exponencialmente e a Olimpíada de Tóquio, esperança de um repique inclusive no ânimo nacional, foi adiada para o ano que vem e corre o risco até de não se realizar. Pressionado por problemas domésticos, o país ainda enfrenta, no plano externo, o furacão hegemônico da China na região e um histórico de ressentimentos com quem seria sua parceira natural, a Coreia do Sul. Nesse contexto, Abe sai de cena com a popularidade em baixa — tem apenas 30% de aprovação —, mas deixa em seu rastro o temor da volta da porta-giratória no cargo mais alto do país e um clima de incerteza que dará trabalho a seu sucessor.
Uma votação dentro do PDL, limitada aos parlamentares e governadores de províncias, vai eleger na terça-feira 15 o novo primeiro-ministro. Até o momento só três políticos declararam se candidatar para suceder a Abe. O favorito nas apostas é Yoshihide Suga, 71 anos, discreto secretário-geral de gabinete de Abe e seu antigo aliado. No lançamento da candidatura, ele prometeu manter a linha econômica do atual governo, que prioriza o crescimento. “Só uma economia forte garante o bem-estar e a segurança nacional”, afirmou. Em sua gestão, Abe pôs em prática um ousado conjunto de medidas, batizado como “Abenomics”, para tirar o país de duas décadas de estagnação através da expansão dos gastos públicos, de estímulos fiscais, de uma inédita abertura a imigrantes qualificados e do esforço para integrar as mulheres ao mercado de trabalho. O Japão, de fato, passou por uma virada que resultou em 71 meses seguidos de crescimento do PIB. “Por um bom tempo, Abe conseguiu trazer estabilidade à economia e à política do Japão”, diz Toru Yoshida, cientista político da Universidade de Hokkaido.
Nos últimos anos, porém, o rombo nas contas provocado pelas medidas de estímulo foi freando o desenvolvimento — o déficit público equivale hoje a 238% do PIB, o maior entre os países ricos. Para tentar reverter o quadro, o governo aumentou o imposto sobre consumo de 8% para 10%, o que desestimulou ainda mais a economia. Com a pandemia, o país parou de vez, caminhando neste ano para uma contração de 5,8%, a pior desde o fim da II Guerra. “Se a crise persistir, terá de ser posto em prática um duro ajuste fiscal”, diz Takeo Hoshi, da Universidade de Tóquio. Contribui para o cenário pouco luminoso da Terra do Sol Nascente o fato de ter diante de si a obrigação de sustentar a população mais envelhecida do planeta — até implementar o home office foi difícil porque os escritórios, movidos a funcionários de mais idade, são analógicos e dependentes de papel. Com tudo isso, e mais o bafo do dragão chinês no pescoço (expresso na disputa por um punhado de ilhas no Mar do Leste da China), o próximo primeiro-ministro terá um desafio e tanto pela frente.
Publicado em VEJA de 16 de setembro de 2020, edição nº 2704