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Jogos vorazes

Em busca de formas alternativas de sustento numa Venezuela fustigada pela crise, jovens faturam com venda de ouro virtual e outros itens de um game on-line

Por André Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 16h38 - Publicado em 26 out 2018, 07h00

Em uma tarde ordinária, o venezuelano Cristian Garcia, de 26 anos, consegue vender algo em torno de 5 milhões de moedas de ouro. Não, Garcia não é um milionário. Tal riqueza é apenas virtual. O comércio se dá na internet, mais exatamente por meio do game de RPG Tibia, criado por desenvolvedores alemães em 1997 e ainda muito popular na rede. Hoje, ele conta com meio milhão de jogadores ao redor do planeta; a qualquer minuto, há mais de 10 000 conectados ao mesmo tempo. No universo digital do RPG Tibia, Garcia é famoso como o mago Panda Dummy. Ele passa pelo menos dez horas diárias on-line, lutando contra monstros e aventurando-se em perigosas missões com outros jogadores. Contudo, seu objetivo não é o entretenimento. O que Garcia conquista com o ouro, espadas e armaduras virtuais é para ser vendido a outros competidores que não têm paciência ou tempo para avançar na jogatina. Com a tarefa, ele lucra em média 1 dólar por hora. Parece pouco, porém na Venezuela de Nicolás Maduro é um ótimo salário: dez vezes a renda média dos conterrâneos e acima do que ganha 87% da população.

Ex-serralheiro, Garcia, que vive em Caracas, ilustra um fenômeno fulgurante que começa a crescer naquele país sul-americano. Os jogadores-mercadores venezuelanos se tornaram tão populares que ganharam uma caracterização inusitada, e pejorativa, de seus clientes, na maioria americanos. Eles são os “Pablos”. A referência é óbvia, mas nada tem a ver com a Venezuela: o narcotraficante colombiano Pablo Escobar (1949-1993).

O sucesso comercial dos gamers venezuelanos de Tibia tem incentivado jogadores de outras nacionalidades a seguir a mesma ideia de transformar o lazer em negócio. Com um detalhe: os que percorrem a trilha aberta por Garcia e seus compatriotas são, sobretudo, jovens baseados em países pobres, especialmente da América Latina. Duas nações também têm se destacado nessa frente: México e Bolívia. Não se sabe, no entanto, quantos “Pablos” estão na ativa hoje em dia — nem mesmo na Venezuela. Há uma explicação, digamos, “legal” para isso: teoricamente, os desenvolvedores do Tibia proíbem o comércio de itens do game. Na prática, entretanto, estão fartos de saber o que está ocorrendo — e fazem vista grossa.

Para jovens que ganham em torno de 30 dólares por mês — o salário mínimo venezuelano —, descobrir, de repente, que podem faturar isso em apenas três dias no RPG, ainda que fiquem muitas horas conectados, é um incentivo e tanto. Daí até o abandono do eventual emprego formal que tenham é um passo. “A gente faz o trabalho pesado para os participantes que moram em países ricos, têm dinheiro e preferem pagar para pular a parte mais chata do jogo, que é correr atrás de novos itens e de ouro para poder explorar missões avançadas”, explica Garcia. Ele fala “a gente” porque, desde que começou o trabalho, muitos outros venezuelanos passaram a aparecer na web ofertando escudos, cajados e afins do mundo de Tibia. Garcia montou uma empresa informal; quatro colegas trabalham com ele. Em cima do que ganha com Panda Dummy, e em comissão cobrada dos empregados, o jovem “empresário” lucra 1 000 dólares por mês. Seus funcionários faturam mensalmente 400 dólares cada um.

O universo virtual de Tibia não está imune, é claro, ao “custo Venezuela”. Em rankings que avaliam a qualidade de conexão à internet em diferentes nações, o país figura na última colocação. Por isso é comum que os clientes dos jogadores-comerciantes tenham de esperar até ser madrugada na Venezuela — quando menos pessoas entram na web e o tráfego flui melhor — para ser atendidos. A julgar pelo faturamento dos empresários do ramo, os compradores acham que a demora no atendimento vale a pena.

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Para receberem em dólar, e não no combalido bolívar soberano, os jogadores-comerciantes venezuelanos frequentemente abrem contas no exterior e pedem à clientela que efetue o pagamento por meio delas. Depois, recorrem ao mercado paralelo para fazer o câmbio. Na atualidade, aproximadamente 1 centavo de dólar é suficiente para comprar 1 bolívar soberano. Apesar dos contratempos, os “Pablos” não cogitam desistir da atividade. Afinal, são raríssimos exemplos de sucesso econômico em um país no qual o PIB per capita diminuiu 39% entre 2012 e 2017 e o desemprego atinge quase 35% da população. Não, não há nada de virtual nisso.

Publicado em VEJA de 31 de outubro de 2018, edição nº 2606

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