Kamala injeta ânimo na campanha, mas caminho para vitória não é fácil
Em matéria de currículo, é a anti-Biden — sua presença manda para o espaço a letargia inicial e faz desta uma eleição como nunca houve nos Estados Unidos
Nos primeiros meses deste ano, a expectativa em relação à eleição presidencial americana no dia 5 de novembro era um desalento só. Tirando a sempre alvoroçada base trumpista, ninguém se empolgava com o embate que se anunciava entre dois senhores de idade avançada, ideias mais do que conhecidas (e rejeitadas) e retrato de dois partidos encalacrados no passado e necessitados de renovação. De repente, faltando 100 dias para a ida às urnas, o clima, os discursos, os ataques, as estratégias eleitorais — tudo mudou. No domingo 21, Joe Biden, isolado em sua casa de praia e ainda por cima com covid, finalmente cedeu ao rolo compressor posto em marcha desde que expôs, em debate na TV, uma nítida confusão mental atribuída a seus 81 anos e, via redes sociais, desistiu de tentar a reeleição. Endossou imediatamente a vice, Kamala Harris, para a cabeça da chapa, introduzindo no centro do quebra-cabeça eleitoral um nome capaz de fazer estremecer as bases da disputa.
Kamala é mulher e meio negra (mãe indiana, pai jamaicano), namorou durante anos um homem não oficialmente divorciado e trinta anos mais velho (“um peso que carrego nas costas”), construiu uma bem-sucedida carreira no serviço público, casou-se tarde com um respeitado advogado judeu e não teve filhos. Em matéria de currículo, é a anti-Biden — sua presença manda para o espaço a letargia inicial e faz desta uma eleição como nunca houve nos Estados Unidos.
Desde o primeiro dia de sua pré-candidatura (sim, o processo recomeça do zero), Kamala, 59 anos, ex-promotora, ex-procuradora-geral da Califórnia e ex-senadora, assumiu as rédeas da campanha. Em mais de 100 ligações, assegurou o apoio das lideranças do Partido Democrata. Energizada, a base abriu a carteira e contribuiu para a campanha com 81 milhões de dólares em pequenas doações, um recorde. No primeiro comício em West Allis, no Wisconsin, depois de derramar elogios ao chefe, deu o tom de sua plataforma: “Estamos focados no futuro. O outro, no passado. Trump quer fazer nosso país retroceder”. Ironias da política: Donald Trump, 78 anos, é agora o idoso ultrapassado na briga pela Casa Branca. Em discurso de onze minutos no Salão Oval para explicar sua decisão, Biden fincou seu próprio alfinete: “Está na hora de passar o bastão para as novas gerações”.
A escolha de Kamala deve ser sacramentada até 7 de agosto, em votação nominal e virtual dos mais de 4 500 delegados eleitos nas primárias, a imensa maioria comprometida com Biden. A oficialização será na convenção do partido, entre 19 e 22 de agosto, em Chicago. A vice deve chegar lá candidata, pois já tem o apoio de 2 579 delegados, bem acima dos 1 976 necessários para a nomeação. A mudança ainda não teve muito efeito nas pesquisas, nas quais Trump e Harris aparecem quase empatados, dentro da margem de erro, embora na da Reuters/Ipsos ela apareça à frente dele — 44% contra 42% —, ao contrário de Biden que, desde o fiasco no debate, sempre estava atrás. Seu mau desempenho refletia negativamente, inclusive, nos candidatos ao Congresso — toda a Câmara e um terço do Senado serão renovados em novembro, e os democratas estão empenhados em uma briga de foice para manter a maioria na primeira e reverter o domínio republicano no segundo, o que atrapalharia sobremaneira um eventual governo Trump. A mobilização do eleitorado para ir votar é fundamental e pode vir a se beneficiar da injeção de ânimo da candidatura Kamala.
Apesar da animação democrata, sua virtual candidata tem uma campanha dura pela frente. Com a maioria dos eleitores dos dois lados de cabeça feita, Trump e Kamala se digladiam pelo voto dos indecisos, boa parte deles moradores de estados conservadores onde a imagem progressista dela — firmemente pró-direito ao aborto, favorável à liberação da maconha, filha de imigrantes conectada ao lado humanitário da questão — não é bem vista. Como promotora na Califórnia, combateu o crime com dureza, o que conta pontos positivos em uma população em que essa é uma das maiores preocupações. Por outro lado, colocada por Biden (com certa maldade, talvez) à frente da força-tarefa para solucionar o enorme problema da imigração ilegal (outra aflição nacional), não tem nenhum resultado para mostrar. “Ela enfrentará o sexismo e o racismo que ainda permeiam a política nos Estados Unidos”, afirma Connie Mixon, professora de ciências políticas na Universidade Elmhurst.
Trump, nas primeiras diatribes em sua rede social, insistiu em que Kamala é só uma continuação do governo Biden e, como sempre, buscou pregar nela um apelido depreciativo — entre outros, acusou a grande mídia de “querer transformar a ‘burra como uma porta’ Kamala Harris de totalmente insignificante vice-presidente em uma futura ‘Grande’ Presidente”. Também já gastou bastante consoante fazendo piada com a risada dela e com uma frase sem pé nem cabeça que, segundo ela, sua mãe dizia: “Não sei qual o problema com vocês, jovens. Pensam que caíram de um coqueiro?” — seguida da tal risada e acompanhada de divagações do tipo “existimos no contexto em que vivemos”. Desde que ela foi endossada por Biden, porém, os memes gozadores deram lugar a memes curtidos por milhões nas redes sociais — tudo graças à muito cool cantora pop britânica Charli XCX, que declarou que “Kamala é brat” — criança levada, em inglês, e nome de seu álbum de grande sucesso — e alçou a vice-presidente ao topo das predileções da sua geração. Passada a lua de mel, Kamala terá muito trabalho pela frente. Os próximos meses devem ser eletrizantes.
Publicado em VEJA de 26 de julho de 2024, edição nº 2903