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Legalização do aborto na Argentina expõe embate entre governo e Igreja

Depois da decisão, papa Francisco voltou a se manifestar de forma velada, afirmando que 'todos nascemos porque alguém desejou para nós a vida'

Por Da Redação Atualizado em 30 dez 2020, 12h47 - Publicado em 30 dez 2020, 12h18

Com a aprovação pelo Senado, a Argentina, país natal do papa Francisco, se tornou nesta quarta-feira, 30, a maior nação da América Latina a legalizar a interrupção da gravidez. Em sua última audiência geral do ano, poucas horas depois da decisão legislativa, o pontífice voltou a se manifestar de forma velada, afirmando que “todos nascemos porque alguém desejou para nós a vida”.

Poucas horas antes da votação, Francisco já havia feito uma publicação sugestiva em suas redes sociais: “O Filho de Deus nasceu descartado para nos dizer que todo o descartado é filho de Deus”.

A legalização do aborto, um projeto de campanha do presidente Alberto Fernández, havia sido aprovado na Câmara dos Deputados em 11 de dezembro e nesta quarta-feira recebeu os votos favoráveis de 38 senadores, 29 votos contrários e uma abstenção. 

Fernández celebrou o resultado no Twitter. “O aborto seguro, legal e gratuito é lei. Me comprometi durante a campanha eleitoral. Hoje somos uma sociedade melhor que amplia direitos às mulheres e garante a saúde pública. Recuperar o valor da palavra empenhada. Compromisso da política”, escreveu o chefe de Estado.

O Congresso também aprovou a Lei dos 1.000 dias, para dar apoio material e de saúde às mulheres de setores vulneráveis que desejam levar adiante a gravidez, de modo que as dificuldades econômicas não representem um motivo para abortar.

Embora tenha sido aprovada com margem maior do que o previsto, a legalização expôs um claro conflito entre o governo e a Igreja, levantando ainda a possibilidade de o papa viajar ao país, segundo o intelectual católico Alver Metalli, do portal Vatican Insider.

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A bancada contra o aborto se mostrou disposta a lutar até o final, com apoio da Igreja Católica e amplo suporte de religiosos no país, mas se mostrou visivelmente golpeada pela gestão do governo de Fernández para evitar que a votação fosse frustrada mais uma vez, segundo o jornal argentino Clarín. Há pouco mais de um mês, Francisco havia se pronunciado de maneira veemente contra o aborto ao compará-lo com “contratar um assassino para resolver um problema”. Na mesma fala, assegurou que o aborto “não é um assunto religioso”, e sim de “ética humana, anterior a qualquer religião”.

Muitos especialistas, no entanto, argumentam que o aborto é uma questão de saúde pública. Cálculos apontam entre 370.000 e 520.000 abortos clandestinos no país a cada ano. Desde a restauração da democracia, em 1983, mais de 3 mil mulheres morreram devido a abortos feitos sem segurança.

Até agora, o aborto era permitido na Argentina apenas em caso de estupro ou de risco de vida para a mulher, legislação em vigor desde 1921.

Azuis e Verdes

Do outro lado, Fernández já havia declarado há alguns dias: “Sou católico, mas tenho que legislar para todos. Além disso, sou um católico que pensa que o aborto não é um pecado”.

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A oposição à interrupção voluntária da gravidez, que adotou a cor azul, teve como representantes a Igreja Católica e a Aliança Cristã de Igrejas Evangélicas (ACIERA), que promoveram grandes manifestações nas ruas e missas ao ar livre, assim como os favoráveis à lei, que por sua vez adotaram a cor verde.

Também havia crucifixos e instalações que simulavam túmulos, ao redor de uma imagem gigante de um bebê manchado de sangue.

“Hoje a Argentina retrocedeu séculos de civilização e respeito ao direito supremo da vida”, reagiu a ACIERA em um comunicado que tem como título “Hoje é um dia triste”.

Segundo uma pesquisa de 2019 sobre crenças religiosas do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet), 62,9% dos argentinos se declaram católicos, 18,9% sem religião e 15,3% evangélicos.

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Do lado “verde”, a favor da medida, a votação durante a madrugada foi acompanhada por milhares de militantes feministas, que celebraram e choraram de emoção com o resultado. Além das mulheres que estavam na praça diante do Congresso, muitas saíram às janelas e varandas para comemorar a notícia.

“Depois de tantas tentativas e anos de luta que nos custaram sangue e vidas, hoje finalmente fizemos história. Hoje deixamos um lugar melhor para nossos filhos e nossas filhas”, disse à AFP Sandra Luján, uma psicóloga de 41 anos que participou na vigília ao lado de milhares de jovens com lenços esverdeados. 

Embora a governante Frente de Todos apoiasse o projeto, nem todos os congressistas do grupo aprovaram a medida. E alguns parlamentares votaram a favor da legalização, apesar de sua fé religiosa.

“Por quê queremos impor por lei o que não podemos impedir com nossa religião?”, questionou a senadora Gladys González, do grupo opositor Juntos Pela Mudança e católica praticante, ao anunciar apoio ao projeto.

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O chefe do Frente de Todos, José Mayans, foi um dos mais duros: “Não tem voz e o Estado é responsável por isso. Para a criança desejada, tudo. Para a não desejada, nem justiça. Pena de morte”, afirmou.

Pouco antes, Anabel Fernández Sagasti, companheira de bancada de Mayans e articuladora do governismo para garantir a aprovação, defendeu o texto. “O mais fácil é olhar para o lado. Mas os abortos existem, existiram e vão continuar existindo. As mulheres abortam”, afirmou. “Algumas tem o dinheiro para pagar um lugar seguro e não serem penalizadas”.

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