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Limites em xeque

Leis que reduzem os prazos para fazer aborto incendeiam as divisões entre os movimentos americanos “pró-vida” e ameaçam interferir até nas séries da Netflix

Por Thais Navarro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 15h59 - Publicado em 7 jun 2019, 07h00

Em que pesem as considerações morais e religiosas, leis que dão às grávidas o direito de decidir se vão ou não abortar e os meios de fazê-lo em segurança são vistas, de modo geral, como uma reafirmação de que o bem comum não deveria se sobrepor a aspirações particulares. Chegar a esse estágio civilizatório, passando por cima de crenças estabelecidas, é uma conquista — daí causar espanto a onda antiaborto que varre os Estados Unidos quase meio século depois de a Suprema Corte decidir em favor da legalização da prática no país. Já são oito os estados que aprovaram leis restringindo tremendamente o aborto ou, em um caso, o do Alabama, praticamente banindo-o. As divisões entre os movimentos “pró-vida” e “pró-liberdade” já resultaram em troca de insultos e sopapos em praça pública e até podem interferir no cenário de séries e filmes de enorme sucesso.

Os projetos aprovados pelos legislativos de estados de maioria republicana criaram, todos eles, leis ilegais, já que contrariam um veredicto da Suprema Corte americana. A histórica decisão Roe versus Wade, em 1973, determinou que o princípio da privacidade na Constituição americana garante às mulheres a opção de abortar e que é obrigação dos estados dispor de clínicas para isso. Quanto ao prazo, o limite-­padrão adotado hoje é o da “viabilidade fetal”, descrita como o momento em que o feto está “potencialmente em condições de viver fora do útero da mãe” — por volta de 24 semanas. As novas legislações, no entanto, fazem uso de um conceito recém-inventado: “o batimento cardíaco fetal”.

De acordo com essas novas leis, o aborto só pode ser feito até a primeira vez em que se “ouve” o coração de um feto, cerca de seis semanas após a concepção — quando muitas mulheres nem sabem que estão grávidas. “É uma forma de praticamente banir abortos”, diz a socióloga americana Carole Joffe, que estuda o assunto. Na quarta-feira 5, o presidente da Associação Americana de Obstetras e Ginecologistas, Ted Anderson, condenou formalmente o uso do termo, que segundo ele “não reflete nem precisão médica nem entendimento clínico”. “O que está sendo interpretado como batimento é, na verdade, um impulso elétrico induzido sobre uma porção do tecido fetal que ainda vai se tornar o coração”, explicou.

Set de  filmagem – Stranger Things
AMEAÇA - Gravação de ‘Stranger Things’: a Geórgia na mira dos artistas (Jackson Davis/Netflix)

Indiferente a considerações científicas, o movimento antiaborto segue em frente, com explícito apoio do governo de Donald Trump, que abraçou a causa durante sua campanha. Nenhuma das leis aprovadas já entrou em vigor. O prazo, na maioria delas, é janeiro de 2020. A esperança dos antiabortistas é que até lá a questão venha a ser reexaminada pela mais alta corte, onde a balança pende a seu favor: com os dois juízes que Trump nomeou, o placar está em cinco conservadores e quatro liberais. Outra ambição é poder processar por homicídio a grávida que abortar, como está previsto na legislação aprovada na Geórgia e como Trump já defendeu em um comício em 2016, quando se pronunciou a favor de “alguma forma de punição”. “Seria uma reviravolta histórica. A mulher que tenta ou concretiza um aborto sempre foi tida como vítima”, diz o historiador Peter Charles Hoffer, da Universidade da Geórgia.

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Justamente desse estado partiu a reação mais retumbante até agora contra o movimento antiaborto: Netflix, Disney e outras produtoras de entretenimento — um setor notoriamente liberal — anunciaram que, se as leis mais duras entrarem em vigor, vão procurar outra locação para suas atrações. Seria um baque e tanto: graças a incentivos fiscais, é lá que são filmadas mega-atrações como Homem-Aranha e Vingadores e séries como The Walking Dead e Stranger Things. O negócio rende mais de 2 bilhões de dólares ao comércio local e cria perto de 100 000 empregos, entre outros dividendos. É a Geórgia entrando na mente dos ativistas da América.

Publicado em VEJA de 12 de junho de 2019, edição nº 2638

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