Às vésperas de a pandemia fechar o planeta para balanço, Harry e Meghan, os duques de Sussex, anunciaram sua chocante decisão de abdicar da posição de senior royals, o mais alto escalão da realeza britânica. No momento combinado, fizeram as malas e partiram com o filhinho Archie inicialmente para o Canadá, depois para os Estados Unidos, onde se instalaram em uma bela mansão nos arredores de Los Angeles. O motivo alegado pelo casal para ir embora chutando a porta foi a incessante e insuportável obsessão dos tabloides em invadir sua privacidade e agredir e diminuir Meghan — alimentados, segundo os dois, por inconfidências vazadas pelo próprio Palácio de Buckingham. De lá para cá, paradoxalmente (ou não), os duques de Sussex só fizeram subir na escala de celebridades — que, como se sabe, são furiosamente assediadas pela imprensa —, abrindo como nunca antes a intimidade da família real. Após uma série de entrevistas bombásticas e uma série-documentário, agora é a publicação da muito aguardada autobiografia do príncipe que vem desvendar, em detalhes suculentos, dramas e picuinhas da Casa de Windsor para Shakespeare nenhum botar defeito.
Um dos trechos mais comentados de Spare (“estepe”, o segundo príncipe que, em caso de morte ou abdicação, ocupa o lugar do herdeiro, o heir), que no Brasil ganhou o infeliz título de O Que Sobra, relata a ocasião em que William, o primogênito do rei Charles III, atacou fisicamente Harry, que saiu da briga com as costas machucadas — uma das várias passagens nas quais o duque de Sussex expõe seu desagrado com o papel que lhe é reservado na família e os efeitos da extrema competitividade do irmão. O livro retrata William como uma pessoa raivosa, impulsiva e cabeça quente, bem diferente da imagem afável e boazinha cultivada a vida inteira. Teriam partido dele algumas das palavras mais duras sobre Meghan, a quem chamou, segundo Harry, de “difícil”, “rude” e “irritante”. Ainda de acordo com o príncipe, foi ele, junto com a mulher, Kate, que o incentivou a usar um uniforme nazista em uma festa a fantasia quando tinha 20 anos e já era tratado pelos tabloides como a ovelha desgarrada da nova geração da realeza.
“O herdeiro e o estepe — não havia nenhuma ambiguidade. Eu era a sombra, o suporte, o plano B.”
Sobre a dificuldade de conviver com o competitivo e cabeça quente irmão William
Cumprindo um acordo prévio, nem William, nem Charles, nem o Palácio de Buckingham se pronunciaram sobre esse e qualquer episódio descrito em Spare. “É a primeira crise de seu reinado e Charles tenta imitar a rainha Elizabeth, mantendo um silêncio digno, mostrando serviço e esperando a tempestade passar”, avalia Craig Prescott, advogado especialista em monarquia da Universidade de Bangor, no País de Gales. Na intimidade, porém, diz Harry, o rei e principalmente a rainha consorte, Camilla, compactuam com os tabloides para enfraquecer rivais e consolidar sua força. O príncipe conta que, quando o pai pediu aos filhos que aceitassem na família a presença da eterna amante, eles concordaram, mas imploraram que não se casasse com ela — no que evidentemente não foram atendidos. Segundo ele, Camilla cultiva boas relações com a mídia e é mestra em soltar informações confidenciais em momentos críticos — seus próprios interesses teriam sido “sacrificados no altar de relações públicas” da madrasta. “Harry sempre esteve sob a mira do escrutínio público. Depois de perceber que nunca escapará disso, decidiu que é melhor tentar ‘montar o dragão'”, analisa Eoin Devlin, professor de história da Universidade de Cambridge.
Em meio às denúncias e revelações controversas, como a contabilização dos 25 talibãs que matou quando serviu no Afeganistão, um dos poucos aspectos comoventes do livro de Harry é sua luta para superar a morte da mãe, quando ele tinha 12 anos. Ainda criança, pediu ao guarda-costas para mostrar as fotos incluídas no inquérito policial do acidente de Diana, na esperança de que pudesse tornar o fato mais real, e ficou abismado com a quantidade de imagens dela à morte no banco de trás. Estava cercada de paparazzi “e ninguém ofereceu ajuda”, diz. Tanto ele quanto William teriam duvidado durante anos que ela tivesse realmente morrido. “Eu achava que tinha resolvido sumir da vida pública e que voltaríamos a nos reunir”, afirmou em uma entrevista. Mais velho, convenceu seu motorista a percorrer o túnel em Paris onde ocorreu o acidente na velocidade exata em que ela fugia dos fotógrafos (100 quilômetros por hora).
O trauma o levou às drogas, a uma vida desregrada e a crises de ansiedade e de pânico, que ele revê em minúcias ao longo da autobiografia. Também conta haver procurado uma vidente, para tentar se reconectar com Diana. “Sua mãe diz que você está vivendo a vida que ela não pôde ter”, teria ouvido na ocasião. Ao lado da exposição dos malefícios dos tabloides e da ligação deletéria dos royals com eles, revelar as consequências da morte da mãe na sua vida e na sua personalidade é um dos pontos centrais de Spare. Afastar-se seria, em parte, uma forma de o príncipe se reconciliar com o passado. “Como Diana, Harry chegou à conclusão de que não pertence nem pode coexistir com a família”, diz Lawrence Goldman, historiador da Universidade de Oxford.
Diana, como o filho caçula, discorreu abertamente sobre assuntos delicados, como seu conturbado casamento e a frieza e a falta de afeto que corroem as relações dentro da “firma” (Harry prefere o termo “instituição”). Em tudo o que falou desde que saiu de casa, porém, e mais ainda em Spare, o príncipe vai além. Alfineta William — ao mesmo tempo “meu amado irmão” e “meu arqui-inimigo” — e Kate, reprova comportamentos do pai e mostra aberta antipatia por Camilla (ser apresentado a ela foi “como tomar uma injeção, a gente fecha os olhos e faz de conta que aquilo não está acontecendo”). Como falar mal dos parentes e exaltar a mãe que perdeu não enche um livro inteiro, Harry recheia a autobiografia precoce — ele tem 38 anos — com detalhes de sua vida privada. Em uma marcha beneficente até o Polo Norte, sofreu queimaduras no rosto, nas orelhas — e no pênis. “Meu Polo Sul congelou”, brinca. Em uma tarde de bebedeira em um pub, escapuliu para a área dos fundos e lá perdeu a virgindade com “uma mulher mais velha”. No casamento de um amigo, teve um ataque de diarreia.
“Eu tinha sentimentos complexos sobre ganhar uma madrasta que me sacrificou em seu altar pessoal de relações públicas.”
Sobre Camilla, a atual rainha consorte
Apesar de tudo, Harry afirma que tem esperança de se reaproximar do pai e do irmão, de quem se afastou. “Não vejo futuro para ele na realeza. Suas revelações explosivas serão vistas como uma traição à família e à memória da avó”, pondera Eleanor Proctor, especialista em monarquia britânica da Universidade de Haute-Alsace, na França. A grande interrogação agora é se o casal será convidado para cerimônias oficiais. Em sendo, aceitaria estar presente na coroação de Charles III, no dia 6 de maio. “Isso é pouco provável e vai lançar uma sombra escura sobre as celebrações”, avalia Sue Woolmans, historiadora da família real. Caso aconteça, vai dar trabalho para o protocolo: a Abadia de Westminster será pequena demais para receber dois irmãos que estão de mal, uma madrasta malvada e um pai ausente entre as mesmas quatro paredes.
Publicado em VEJA de 18 de janeiro de 2023, edição nº 2824