Na devastadora entrevista em que Meghan, toda circunspecta e eventualmente chorosa ao lado do marido, o príncipe Harry, lavou e enxaguou a roupa suja da família real britânica diante da apresentadora Oprah Winfrey, um dos pontos mais furiosamente comentados nas redes foi a revelação de que membros da realeza teriam, em uma conversa, manifestado preocupação com a cor da pele do filho que ela esperava — o pequeno Archie, hoje com 4 anos. “Marrom demais seria um problema?”, perguntou Oprah. “Se essa é a sua conclusão, diria que é confiável”, respondeu, cheia de dedos, a duquesa de Sussex, filha de pai branco e mãe negra, em 2021, um ano depois de o casal abdicar da condição de senior royals, o primeiro escalão da realeza. Muito se especulou desde então sobre de quem teria partido o inadequado comentário. Agora (parece) se sabe: eles saíram da boca do rei Charles e de Kate, a princesa de Gales — imediatamente apelidados de royal racists.
A momentosa revelação apareceu em uma edição holandesa rapidamente recolhida do livro Endgame: Inside the Royal Family and the Monarchy’s Fight for Survival (Jogada final: por dentro da família real e a luta da monarquia pela sobrevivência), escrito pelo polêmico Omid Scobie, jornalista especializado em monarquia de 42 anos e carinha repuxada de 20. Os dedos dos tabloides monarquistas logo apontaram para Meghan, visto ser Scobie também autor de Finding Freedom, biografia semiautorizada dos duques de Sussex na qual a própria duquesa teria dado seus pitacos.
Na nova obra do suposto amigo de Meghan, o rei é qualificado de “impopular”, seu herdeiro William, descrito como alguém que “prioriza a lealdade à Coroa e coopera discretamente com a imprensa do Reino Unido para prejudicar Harry”, e a rainha Camilla, apresentada como uma pessoa que “faz de tudo para preservar a imagem”. A menção ao racismo está lá, mas sem nomes, em obediência às leis britânicas. Tudo ia bem, e Scobie caminhava para mais um best-seller, quando não mais que de repente a editora holandesa Xander Uitgevers anunciou haver retirado temporariamente o livro de circulação devido a “um erro de tradução”, em acusação um tanto fácil e irresponsável. O erro eram os nomes de Charles e Kate.
Em tempos de internet, a identificação dos royal racists logo ganhou as redes, mas a imprensa se calou por motivos legais. Isso até o controverso apresentador Piers Morgan, monarquista de raiz e crítico ferrenho de Harry e Meghan, abrir o jogo em seu programa Piers Morgan Uncensored — com a ressalva de, pessoalmente, não acreditar que ”comentários racistas tenham sido feitos”. A pergunta de 1 milhão de libras é: como os nomes foram parar na versão holandesa do livro, impresso sem eles em vários outros idiomas? Scobie nega terminantemente que tenha identificado Charles e Kate. “O livro que eu editei e assinei não continha nomes”, afirma. Uma das tradutoras holandesas localizada pelo tabloide britânico Daily Mail em sua casa disse que simplesmente reproduziu no seu idioma o texto que recebeu — explicação para lá de plausível. É possível, embora improvável, que algum tradutor tenha recebido uma cópia ainda não definitiva, para adiantar o trabalho, e a editora não a atualizou. Mas por que só com um único profissional na Holanda?
O Palácio de Buckingham não se manifestou. Meghan e Harry, de novo sob os holofotes após um período apagados, e supostamente incomodados, teriam acionado sua própria equipe jurídica para investigar o caso. “Desde que se afastaram do alto escalão da realeza, os dois se fazem de vítimas e reclamam de como foram tratados. A revelação dos nomes parece ter colocado todos do mesmo lado”, diz Angela Levin, jornalista britânica, autora de uma biografia de Harry. Lançando mão da usual prática de recados enviesados, a duquesa apareceu usando um bracelete presenteado pelo rei às vésperas de seu casamento. Mais: segundo fontes não identificadas, Charles recebeu nos últimos dias um vídeo fofo de Archie e sua irmãzinha, Lilibet, 2, cantando parabéns pelo seu aniversário, em meados do mês passado. Manipulação, erro ou falsidade — eis a questão.
Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2023, edição nº 2871