A catedral de Colônia, cujos pináculos parecem rasgar os céus da cidade alemã, é dona de um impressionante recorde: levou 640 anos, entre os séculos XIII e XIX, para tomar as belas formas góticas apreciadas ainda hoje. No tempo em que começou a ser erguida, o trabalho era essencialmente manual — gigantescos blocos de pedra vindos de longe eram movidos por meio de rudimentares engrenagens e, mesmo irregulares, precisavam se encaixar uns nos outros. Por isso espanta que, com todos os avanços acumulados de engenharia, a basílica da Sagrada Família, obra-prima de Antoni Gaudí (1852-1926), plantada em Barcelona, na Espanha, siga inacabada há 142 anos. Muita gente nem mais acreditava que o conjunto pudesse um dia ficar pronto depois de tão arrastada epopeia, mais eis que, enfim — e apele-se a São Tomé, é ver para crer —, foi divulgada uma data para que o edifício seja concluído: 2026, de modo a coincidir com as celebrações do centenário da morte de Gaudí, que testemunhou apenas 15% de seu projeto de pé. Ele revelava, porém, uma daquelas certezas inabaláveis: “Pessoas de todo o mundo virão ver o que estamos fazendo aqui”, dizia.
O arquiteto, que se dedicou à construção por 44 anos, não estava errado: a basílica, uma expressão do modernismo catalão, com influências do neogótico ao art nouveau, ocupa as primeiras posições entre os monumentos mais visitados do planeta. Com uma nave pensada para lembrar uma floresta, apoiada em colunas que se ramificam como árvores, seu interior é banhado de luz graças à farta coleção de vitrais. A depender da estação do ano e da hora do dia, as cores refletidas na estrutura, repleta de detalhes como pássaros, insetos e plantas, produzem um efeito diferente. Profundamente religioso, Gaudí, que via nas várias manifestações da vida algo de divino, costumava afirmar: “Nada é inventado. Está tudo escrito na natureza”. Gostando-se ou não do excesso de ornamentos e curvas — certa vez, o sempre afiado George Orwell escreveu estar diante de “um dos prédios mais horríveis” que já haviam cruzado seu caminho —, o invento de Gaudí intriga o olhar.
Tamanho atraso para ver a basílica finalizada se explica, em boa parte, pelas turbulências das décadas que se seguiram ao marco zero, 1881, quando um livreiro comprou o terreno no distrito de Eixample com a ideia de abrigar ali uma pequena igreja. Foi um ano mais tarde que Gaudí entrou em cena e começou a conceber algo bem maior no quinhão da cidade que seria arrematado pela diocese de Barcelona. Aí veio a Primeira Guerra, depois a gripe espanhola e, em 1926, o arquiteto seria vítima de um atropelamento fatal. Seus discípulos assumiram as rédeas, mas, nos anos de 1930, com a Guerra Civil na Espanha, o estúdio onde ainda ficavam guardados seus desenhos e maquetes, que traduziam seus megalômanos planos para a Sagrada Família, pegou fogo e quase todo o material desapareceu.
Sem a memória do original, cada profissional que assumia a missão de tocar a obra o fazia ao seu modo, elevando a fervura entre os críticos, que disparavam contra algo que não reconheciam como autêntico Gaudí. “Claramente, não se trata de um desenho fechado, mas de um projeto que sempre deixou a porta aberta a interpretações dos que vieram depois dele”, observa David Cohn, especialista em história da arquitetura. “É como se fosse um trabalho de Gaudí e não Gaudí ao mesmo tempo”, define, como tantos outros que enxergam o ímpeto inovador do mestre nas linhas tortuosas da igreja, mas imaginam outras trilhas que ele teria percorrido para arrematar seu mais ambicioso trabalho.
Das dezoito prometidas torres, cada qual simbolizando uma figura bíblica, faltam apenas duas — a que representa Cristo baterá recorde mundial de altura, 172,5 metros. O dinheiro para levantar tão grandiosa obra vem dos ingressos e de doações de gente ansiosa por um ponto-final. Ainda que nem tudo ali tenha saído da fervilhante cabeça de Gaudí, autor de outros icônicos monumentos que fazem a festa dos turistas em Barcelona, como a Casa Milà e o Parque Güell, sua marca está gravada na construção convertida em basílica pelo papa Bento XVI, em 2010. “A superioridade do projeto de Gaudí vem de sua capacidade de criar imagens fortes e chamativas, buscando a novidade sempre movido pelo uso de materiais e formas pouco convencionais”, diz Juan José Lahuerta, diretor da cátedra Gaudí da Universidade Politécnica da Catalunha. De alguma forma, o arquiteto se alimentava da demora em seu incessante processo criativo. Aos que lhe perguntavam quando a última torre despontaria na paisagem, limitava-se a dizer: “Meu cliente não tem pressa”.
Publicado em VEJA de 3 de maio de 2024, edição nº 2891