Por algum tempo no ano passado imaginou-se que Nicolás Maduro, o presidente da Venezuela, estava por um fio. Bastaria um empurrãozinho e ele cairia, abrindo caminho para a volta da democracia e a saída do fundo do poço econômico. Os vizinhos se mobilizaram, os Estados Unidos viabilizaram recursos e sanções, a população foi às ruas e um deputado autoproclamado presidente, Juan Guaidó, saiu do anonimato para a personificação de uma nova Venezuela. Mas Maduro não caiu — ao contrário, fortaleceu-se. No domingo 6, os chavistas realizaram uma eleição legislativa talhada para saírem vitoriosos. E saíram: tiveram quase 70% dos votos dos pífios 31% dos eleitores que se deram ao trabalho de sair de casa para ir votar. “O governo não garantiu mínimas condições para um pleito justo”, diz José Antonio Rivas, cientista político da Universidade de Los Andes, de Mérida.
Preparando o caminho para fazer maioria da Assembleia Nacional, a Casa do Legislativo que o próprio governo esvaziou e agora reativa, o Tribunal Supremo de Justiça, em mãos de ministros de confiança do regime, usou de artifícios para afastar de seus cargos os dirigentes dos três principais partidos da oposição. No lugar deles entraram políticos mais maleáveis, dispostos a dar legitimidade às eleições, mesmo a derrota sendo certa. Em outra jogada, pouco antes da votação o mesmo TSJ nomeou novos diretores para o Conselho Nacional Eleitoral — os quais, em seguida, ampliaram o total de assentos na Assembleia, de 167 para 277 deputados, e situaram as vagas recém-criadas em regiões de forte influência do chavismo. Para completar o arcabouço de armações, os aliados de Maduro retomaram a prática bolivariana de prometer cestas básicas a quem fosse às urnas e votasse no governista Partido Socialista Unido da Venezuela. Em um comício do partido, Diosdado Cabello, número 2 do chavismo, soltou a piada sem graça: recomendou às mães presentes que, em casa, avisassem os maridos de que “quem não vota não come”.
Ao reabilitar a Assembleia Nacional e fazer ampla maioria nela, o ditador torna ainda mais precária a situação de Guaidó, o deputado que chegou aonde chegou justamente por causa do esvaziamento da Casa. Ao perceber que em seu novo mandato, a se iniciar em 2019, enfrentaria uma oposição mais organizada, Maduro inventou uma Assembleia Constituinte, formada por aliados, e lhe transferiu todos os poderes. A oposição, entrincheirada na Assembleia, elegeu Guaidó seu presidente, declarou nula a reeleição de Maduro e, no vácuo do poder, o presidente da Assembleia se proclamou presidente interino da República. Foi reconhecido por boa parte do mundo e iniciou o nado que, no fim, morreu na praia. Maduro segurou-se no Palácio de Miraflores graças à fidelidade dos militares e à ajuda tática e financeira de Irã, Cuba e Rússia, principalmente. Uma patética tentativa de golpe por parte de um grupo de mercenários fracassou e virou propaganda nacionalista. A Covid-19 acabou de fazer o estrago.
A oposição quase em peso boicotou a eleição do dia 6, inclusive Guaidó — o que significa que o mandato e a imunidade dos deputados acabam em janeiro, bem como o alicerce constitucional da Presidência interina. “Mesmo que os mais de cinquenta países que apoiam Guaidó não reconheçam o resultado das eleições, o apoio internacional se enfraquecerá”, prevê o cientista político Omar Noria, da Universidade Simón Bolívar. Sob ameaça de um mandado de prisão por envolvimento em uma suposta insurreição apoiada pelos Estados Unidos, Guaidó não descarta a possibilidade de deixar o país. “Enfrentamos um risco latente, presente todos os dias”, disse em entrevista recente.
Os países do Grupo de Lima, que inclui o Brasil e foi criado para acompanhar a crise venezuelana, contestaram o resultado da eleição. Desde que eles foram divulgados, a oposição se reúne diariamente para buscar uma solução para seu impasse. Os principais dirigentes organizam uma consulta popular, presencial e pela internet, para avalizar suas demandas de rejeição das eleições parlamentares, rechaçar Maduro e proclamar a aceitação da interferência internacional na crise do país. Considera-se, no entanto, que será um esforço inútil diante da desmobilização da população, que mal sai às ruas desde que a pandemia se abateu sobre ela. “Não há nenhuma perspectiva de mudança no cenário atual”, afirma José Antonio Rivas. Faminta, doente, falida e desesperançada, a Venezuela é um país à deriva.
Publicado em VEJA de 16 de dezembro de 2020, edição nº 2717