Ao menos 230 pessoas perderam a visão, parcial ou completamente, durante os protestos que abalam o Chile há quase um mês, segundo uma importante associação médica do país. Os ferimentos são causados por esferas de chumbo ou balas de borracha disparadas pelas forças policiais nas manifestações.
A cifra de feridos nos olhos durante a crise no país supera o número de casos registrados na França durante a crise dos ‘coletes amarelos’, nos protestos em Hong Kong e no conflito israelense-palestino, segundo denúncias do Colégio Médico do Chile e de grupos de direitos humanos.
Ao dispararem as esferas, “quiseram me causar dor, vergonha, arrependimento, medo, mas sinto que provocou o efeito contrário: sinto mais raiva do que medo; mais ódio do que vergonha e é contra essas pessoas que estão aí fora, atirando, mutilando as pessoas”, diz Carlos Vivanco, um dos muitos manifestantes feridos em Santiago.
Este estudante secundarista perdeu a visão total do olho esquerdo há três semanas, quando foi a um protesto em seu bairro, La Pintana, na periferia da capital. Enquanto corria para fugir da polícia, foi atingido por oito esferas de chumbo no corpo, inclusive a que lhe causou a grave lesão ocular.
Por pouco não perdeu a visão do outro olho: outra esfera ficou encrustada na glândula lacrimal. Alguns centímetros a mais e Carlos teria tido o mesmo destino de Gustavo Gatica, um estudante de 21 anos, que ficou quase cego após ter sido atingido nos dois olhos por esferas na sexta-feira passada.
“Estava claro do que são capazes, mas não pensei que tivessem permissão para atirar assim, como açougueiros”, afirma o jovem.
Praça Dignidade
A quilômetros de La Pintana, nas proximidades da Praça Itália – epicentro das manifestações e apelidada pelos manifestantes como “Praça Dignidade” -, César Callozo foi ferido assim como Carlos, quando tocava percussão com outros músicos.
“Havia um ambiente muito lindo; de repente senti o impacto no olho e caí no chão. Depois, a dor foi embora e o rosto ficou dormente; fiquei de pé e gritei que não iam me vencer”, lembra à beira das lágrimas este construtor e músico de 35 anos, enquanto aguarda junto a outros feridos o exame médico no hospital Salvador de Santiago.
Na mesma sala, Nelson Iturriaga, de 43 anos, também espera que os médicos o ajudem a recuperar em parte a visão do olho ferido.
“Quiseram apagar o incêndio com gasolina e o povo continua nas ruas”, pedindo “dignidade”, diz Iturriaga, também construtor.
“Epidemia”
Mauricio López, chefe de turno da Unidade de Trauma Ocular do Hospital Salvador, que recebe a maioria das vítimas atingidas por esferas metálicas, lamentou a situação. “É uma epidemia”, advertiu o oftalmologista.
Segundo o Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH) a maioria dos ferimentos oculares registrados nas últimas semanas foram causados “por tiros de escopetas com esferas, mas também com outras armas, como o lançamento de bombas de gás lacrimogênio”.
López assegurou que em 35 casos os feridos chegaram com olhos com lesões profundas e risco quase total de perder a visão.
O governo defendeu a ação dos policiais junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, embora tenha se comprometido a limitar o uso deste tipo de munição.
Até o momento, as manifestações já deixaram 20 mortos, cinco nas mãos das forças de segurança, milhares de feridos e detidos. A crise social levou presidente Sebastián Piñera a enviar os militares para patrulhar as ruas por nove dias.
Mudanças profundas no sistema privado de pensões, que castiga a maioria com renda insuficiente, e a reforma da Constituição, herdada da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), são os pilares das demandas de uma população que pede um país menos desigual.
Com quase um mês de mobilizações, os protestos seguem. Nesta sexta-feira, 15, congressistas chilenos anunciaram que o país realizará um plebiscito em abril de 2022 para estabelecer uma nova Constituição.
“O movimento me custou um olho, mas estou feliz” porque a luta por um Chile mais justo continua, diz Carlos, mostrando orgulhoso a tatuagem sobre os dedos, que forma a palavra “Liberdade”.
(Com AFP)