No movimentadíssimo Aeroporto de Hong Kong, ocupado durante dois dias em agosto por manifestantes que paralisaram pousos e decolagens, o protesto começa a perder força e o saguão está se esvaziando. Um jovem puxa o celular, abre o aplicativo Telegram e, sem se identificar, cria um grupo de adesão aberta com a pergunta: “Para onde vamos agora?”. Imediatamente, pipocam novos membros e um deles sugere: “Para a bolsa de valores”. Pronto: nasce então mais uma das mobilizações que se espalham há dois meses pela cidade, promovidas por moradores empenhados em derrubar o governo pró-China e exigir eleições livres. A 7 000 quilômetros dali, em Moscou, em todos os fins de semana desde o início de julho as ruas são palco de protestos convocados via aplicativo e plataformas de chats, pedindo que seja revertida a cassação da candidatura de ao menos dezenove oposicionistas nas eleições municipais de 8 de setembro. Nos dois casos, a revolta popular não tem liderança definida, nem sede oficial, nem agenda predeterminada de pontos de aglomeração — tudo acontece de repente, de surpresa, no estilo das flash mobs de grupos que dançam e cantam, só que de modo bem menos festivo. “Graças à descentralização do poder de comunicação, hoje é muito fácil fazer uma manifestação. Não há necessidade de uma organização central”, explicou a VEJA Yascha Mounk, cientista político da Universidade Harvard.
Protestos espontâneos, capazes de mobilizar muita gente, sempre aconteceram. Foi essa a mecânica que, por exemplo, impulsionou os franceses a promover as grandes e ruidosas manifestações de maio de 1968 em Paris. A chegada da internet facilitou tremendamente o boca a boca que faz gente que não se conhece sair de casa e se reunir em um mesmo local. Em 2004, na Espanha, centenas de milhares de pessoas tomaram as praças e avenidas de Madri em um gigantesco protesto contra atentados terroristas que causaram 199 mortes, atendendo a convocações via SMS, o serviço de mensagens da época. As redes sociais serviram de motor para a Primavera Árabe, a partir de 2010, levando milhares às praças das capitais do Norte da África para pedir o fim de governos repressivos encastelados há décadas no poder. O que a mobilização via aplicativo tem agora de diferente é a menor amplitude de objetivos. Saem “democracia” e “direitos humanos”, entram exigências não menos justificadas, mas bem mais imediatistas e locais. Daí vem seu poder instantâneo de atração. “As mesmas redes sociais trazem essa realidade para a geopolítica global”, aponta Mounk.
Em pleno verão, Moscou ferve com as passeatas que começam na frente do Kremlin e seguem pelas avenidas. Até o sábado 24 a polícia já havia detido mais de 2 400 manifestantes, com requintes de agressão devidamente gravados e divulgados pelo mundo. Quando as autoridades puseram na cadeia, em julho, o principal líder da oposição, Alexei Navalny, tinham a expectativa de que o movimento enfraquecesse. Pelo contrário, ele só cresceu, atingindo o ápice no sábado 10, dia em que 50 000 pessoas atenderam ao chamado dos aplicativos e redes sociais — o maior ato de protesto na Rússia desde 2012. Mas nada nos últimos tempos se compara, em tamanho, às aglomerações diárias em Hong Kong, que já chegaram a reunir milhões. Mais de 800 prisões não afetaram a disposição da população de ir às ruas. Falando a VEJA, Joshua Wong, estudante de 22 anos que serve de porta-voz (há vários) dos protestos, ressalta que as pessoas estão unidas porque a demanda é simples: “Queremos eleições livres”.
O ponto fraco do protesto tipo flash mob é o risco de que o movimento, na ausência de líderes que mantenham a chama acesa, vá perdendo apoio até morrer. “A falta de uma estratégia organizada pode ser uma desvantagem”, diz Mounk. É justamente pelo cansaço que Vladimir Putin, na Rússia, e Xi Jinping, na China continental, esperam vencer os jovens que gritam nas ruas. Mesmo com os manifestantes de Hong Kong seguindo disciplinadamente os três princípios básicos da sua mobilização — não atribuir culpas, não se dividir e não dedurar —, a ocupação do aeroporto provocou um racha entre os que eram favoráveis a que se pedisse perdão à população pelo incômodo causado e os que insistiam que esse gesto cabia ao governo. A questão foi superada e os protestos continuam. Até quando, ninguém se arrisca a prever.
Publicado em VEJA de 4 de setembro de 2019, edição nº 2650