A cada primeira-dama que entra na Casa Branca, vem a pergunta: o que ela vai fazer de diferente neste posto de tão estreita janela criativa? Alvo atual das expectativas, Jill Biden, 69 anos, começa levando vantagem. Será a primeira mulher de presidente a ter um emprego remunerado. Jill é professora universitária de redação, com mestrado, doutorado e fama de durona — entre seus alunos, o comentário mais frequente é a raridade de notas altas dadas à turma. Com a suspensão das aulas por causa da pandemia, ela pôde se preparar tranquilamente para a posse de Joe Biden no dia 20 — na qual circulou com um correto conjunto de lã azul de Alexandra O’Neill, estilista conhecida por apoiar causas sustentáveis — e dias depois ir a pé ao Capitólio distribuir, simpaticamente, guloseimas para integrantes da Guarda Nacional que se amontoavam pelo prédio, encarregados da segurança da capital na explosiva transição pós-Donald Trump.
À vontade, postou nas redes sociais a chegada à nova moradia de Champ e Major, os dois pastores-alemães do casal. É sabido que pretende se empenhar em duas causas, a ampliação do ensino universitário gratuito e a prevenção e tratamento de câncer de mama. No mais, Jill deve ter, sim, forte influência no governo, mas sem aparecer muito — é nos bastidores que ela exerce seu papel de confidente e interlocutora de confiança de Biden, com quem está casada há 44 anos.
Não será a primeira vez que Jill se divide entre a sala de aula e os altos círculos de Washington. Entre 2009 e 2017, enquanto o marido foi vice de Barack Obama, a segunda-dama seguiu lecionando em um community college (um braço do ensino superior americano que prepara alunos para o diploma definitivo) na Virgínia, tão discreta que nem era notada no câmpus. Na época, obrigou seus guarda-costas a se vestir de modo a mesclar-se com os estudantes. A vida de gente como a gente virou motivo de brincadeiras na Casa Branca, como a ocasião em que passou por uma reunião carregando uma pilha de papéis e Obama fez piada: “Alguém aqui tem um trabalho normal. Conta para a gente como é, Jill”. “Os americanos enxergam a primeira-dama como alguém que existe para dar suporte ao marido. Jill Biden rompe com isso, é uma mulher do século XXI”, diz Katherine Jellison, professora de história da Universidade de Ohio. Orgulhosa de seus méritos acadêmicos, ela sempre se apresenta como doutora Biden — tema de um artigo no conservador The Wall Street Journal sugerindo que, no mundo moderno, o termo só deveria se aplicar a médicos. Ela rebateu, no Twitter: “Vamos construir um mundo em que as realizações de nossas filhas sejam celebradas, e não diminuídas”.
Mais velha de cinco irmãos, Jill cresceu em um subúrbio de classe média da Filadélfia. Casou-se aos 18 anos e separou-se aos 23. O primeiro encontro com Biden, exaustivamente relatado em biografias e entrevistas, teria sido arranjado pelo irmão dele, em 1975. Jill estava saindo do divórcio e Biden ainda se recuperava da perda, três anos antes, da mulher, Neilia, e da filha Naomi, de 13 meses — as duas foram vítimas de um acidente de carro que deixou os garotos, Beau e Hunter, de 3 e 2 anos, gravemente feridos. Só se casariam dois anos e cinco pedidos depois. “Os filhos de Joe não podiam perder outra mãe. Precisava ter 100% de certeza”, justificou ela. Os dois tiveram uma filha, Ashley, em 1981, e por algum tempo Jill deixou de trabalhar para cuidar dos três, sendo tratada como a mãe de Beau (que morreu de câncer em 2015) e de Hunter, o filho-problema, que se envolveu com drogas e suspeitas de negociatas, supostamente regenerado.
Ao contrário da arredia Melania Trump, Jill é desenvolta, acessível e popular, lidando com o público com a tarimba de quem passou toda a vida adulta circulando pelo difícil ambiente político de Washington (Biden já era senador quando se casaram). Gosta de se vestir bem, sem ousadias, e não deve ter problemas em se ver examinada com lupa a cada noite de gala na Casa Branca. Depois da posse, enquanto o marido assinava ordens executivas e encaminhava decretos para dar conta de uma infinidade de problemas — pandemia em alta, vacinação lenta, impeachment de Trump monopolizando o Senado —, Jill ouvia de auxiliares a orientação de olhar com calma a sombra do ex-marido, Bill Stevenson, de quem, aliás, foi sócia em um bar durante o casamento. Figura conhecida em Delaware, onde todos têm residência, Stevenson, empresário de sucesso, anda espalhando que o romance de Jill e Biden começou quando ela ainda estava casada e ameaça escrever um livro. “Não guardo rancor, acho que será uma ótima primeira-dama. Mas é a minha história também”, diz. Caso Stevenson venha a cumprir a promessa, a volta às aulas da doutora Biden será animada.
Publicado em VEJA de 3 de fevereiro de 2021, edição nº 2723