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México: o que está por trás da lei que dá um choque no Poder Judiciário

No fim do mandato, AMLO sanciona lei que determina a eleição de juízes pelo voto popular, medida que deve causar enorme confusão

Por Caio Saad Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 22 set 2024, 08h00

Em seus últimos dias de mandato, o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, o AMLO, pôs em marcha uma pouco testada e até perigosa reforma do sistema judiciário sem perder um único pontinho de seus 60% de apoio popular — apoio de verdade, não aquele imposto de cima para baixo pelos autocratas de plantão. Aprovada sem resistências no Congresso, onde seu partido, o Morena, conta com confortável maioria, e endossada pela maior parte dos 32 estados, a nova lei determina que, a partir do ano que vem, todos os juízes mexicanos, em vez de indicados, serão eleitos pelo voto popular a partir de listas de candidatos elaboradas pelos Três Poderes.

Para os críticos, a mudança representa uma séria ameaça à independência dos juízes e um reforço do viés autoritário do governo, além de plantar o sistema em terreno desconhecido. Para AMLO, ela sanará deficiências históricas. “O Judiciário não faz justiça. É muito importante acabar com a corrupção e a impunidade”, disse em coletiva ao lado de Claudia Sheinbaum, que assume como primeira mulher presidente do México em 1º de outubro e manifesta total aprovação à reforma.

O governo alega que a escolha pelo voto atende a um anseio da população — 66% dos mexicanos consideram os juízes corruptos. Mas enfrentou protestos, sobretudo de estudantes e funcionários do Judiciário, contra a medida, até porque é no mínimo duvidoso que o simples fato de serem eleitos resolva o problema. “O método de seleção via eleitoral em si não é problemático, mas também não é infalível e não se aplica a todos os cenários”, alerta Héctor Soto García, do Instituto Mexicano de Direitos Humanos e Democracia. Especialistas ressaltam que a eleição dos quase 7 000 magistrados do México, em vez de garantir sua isenção, pode, na verdade, prejudicar sua independência e imparcialidade. Na Bolívia, um dos raros países a adotar a votação em nível federal, em 2009, a mudança não acabou com a corrupção, politizou os tribunais e minou a confiança do público. No México, a iniciativa embute ainda certo ressentimento, já que a Suprema Corte derrubou propostas caras ao presidente.

POPULARIDADE - AMLO, com Sheinbaum: em busca de um lugar na história
POPULARIDADE - AMLO, com Sheinbaum: em busca de um lugar na história (Juan Abundis/Getty Images)

A reforma proíbe que os candidatos a juiz recebam doações públicas ou privadas (sem explicar como vão financiar suas campanhas), mas não impede que empresários, líderes políticos e até chefes de cartéis de drogas pressionem por seus favoritos. Por sua participação na elaboração das listas de candidatos, Executivo e Legislativo também podem influenciar a votação e aumentar ainda mais o poder do Morena e seus aliados. No lugar de testes de proficiência, os candidatos terão apenas que apresentar o diploma em direito e cinco anos de experiência (dez, no caso da Suprema Corte), acompanhados de “boas notas e cartas de recomendação”. Metade dos juízes será eleita em julho de 2025 e o restante em 2027, com até nove candidatos por vaga, o que significa que só a votação para o Supremo poderá mobilizar 81 postulantes.

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O sistema judicial do México é, de fato, notoriamente vagaroso e ineficiente, sujeito a corrupção e infestado de nepotismo. Uma pesquisa do Mexico Evalua, que avalia políticas governamentais, sobre o nível de impunidade em denúncias de homicídios dolosos, feminicídios, abusos sexuais, desaparecimentos e sequestros em 2022, mostrou que a imensa maioria não teve qualquer punição — 95,7%, no caso dos homicídios dolosos. “As pessoas sabem que o sistema não funciona bem, o que deu gás à aprovação da reforma. Mas, se os problemas fundamentais e estruturais permanecerem, os juízes eleitos não estarão mais bem equipados para lidar com eles”, diz Miguel Ángel Toro, do Instituto Tecnológico de Monterrey.

Os Estados Unidos, para onde o México destina 80% de suas exportações, reagiram à reforma afirmando que ela ameaça um relacionamento que depende da confiança dos investidores e pode representar “um grande risco” para a democracia. Inabalável, AMLO segue firme no presunçoso projeto de promover, com seu partido, a “quarta transformação” do México, expressão recorrente em seus longuíssimos discursos que coloca os feitos do governo no patamar de outros três momentos-chave da história: a guerra da independência, a separação entre Igreja e Estado e a revolução contra a ditadura de Porfirio Díaz. Na reta final do mandato, AMLO mexe os sombreiros para garantir um lugar ao sol nos livros de história do México. Corre o risco de sofrer uma insolação.

Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2024, edição nº 2911

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