México: o que está por trás da lei que dá um choque no Poder Judiciário
No fim do mandato, AMLO sanciona lei que determina a eleição de juízes pelo voto popular, medida que deve causar enorme confusão
Em seus últimos dias de mandato, o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, o AMLO, pôs em marcha uma pouco testada e até perigosa reforma do sistema judiciário sem perder um único pontinho de seus 60% de apoio popular — apoio de verdade, não aquele imposto de cima para baixo pelos autocratas de plantão. Aprovada sem resistências no Congresso, onde seu partido, o Morena, conta com confortável maioria, e endossada pela maior parte dos 32 estados, a nova lei determina que, a partir do ano que vem, todos os juízes mexicanos, em vez de indicados, serão eleitos pelo voto popular a partir de listas de candidatos elaboradas pelos Três Poderes.
Para os críticos, a mudança representa uma séria ameaça à independência dos juízes e um reforço do viés autoritário do governo, além de plantar o sistema em terreno desconhecido. Para AMLO, ela sanará deficiências históricas. “O Judiciário não faz justiça. É muito importante acabar com a corrupção e a impunidade”, disse em coletiva ao lado de Claudia Sheinbaum, que assume como primeira mulher presidente do México em 1º de outubro e manifesta total aprovação à reforma.
O governo alega que a escolha pelo voto atende a um anseio da população — 66% dos mexicanos consideram os juízes corruptos. Mas enfrentou protestos, sobretudo de estudantes e funcionários do Judiciário, contra a medida, até porque é no mínimo duvidoso que o simples fato de serem eleitos resolva o problema. “O método de seleção via eleitoral em si não é problemático, mas também não é infalível e não se aplica a todos os cenários”, alerta Héctor Soto García, do Instituto Mexicano de Direitos Humanos e Democracia. Especialistas ressaltam que a eleição dos quase 7 000 magistrados do México, em vez de garantir sua isenção, pode, na verdade, prejudicar sua independência e imparcialidade. Na Bolívia, um dos raros países a adotar a votação em nível federal, em 2009, a mudança não acabou com a corrupção, politizou os tribunais e minou a confiança do público. No México, a iniciativa embute ainda certo ressentimento, já que a Suprema Corte derrubou propostas caras ao presidente.
A reforma proíbe que os candidatos a juiz recebam doações públicas ou privadas (sem explicar como vão financiar suas campanhas), mas não impede que empresários, líderes políticos e até chefes de cartéis de drogas pressionem por seus favoritos. Por sua participação na elaboração das listas de candidatos, Executivo e Legislativo também podem influenciar a votação e aumentar ainda mais o poder do Morena e seus aliados. No lugar de testes de proficiência, os candidatos terão apenas que apresentar o diploma em direito e cinco anos de experiência (dez, no caso da Suprema Corte), acompanhados de “boas notas e cartas de recomendação”. Metade dos juízes será eleita em julho de 2025 e o restante em 2027, com até nove candidatos por vaga, o que significa que só a votação para o Supremo poderá mobilizar 81 postulantes.
O sistema judicial do México é, de fato, notoriamente vagaroso e ineficiente, sujeito a corrupção e infestado de nepotismo. Uma pesquisa do Mexico Evalua, que avalia políticas governamentais, sobre o nível de impunidade em denúncias de homicídios dolosos, feminicídios, abusos sexuais, desaparecimentos e sequestros em 2022, mostrou que a imensa maioria não teve qualquer punição — 95,7%, no caso dos homicídios dolosos. “As pessoas sabem que o sistema não funciona bem, o que deu gás à aprovação da reforma. Mas, se os problemas fundamentais e estruturais permanecerem, os juízes eleitos não estarão mais bem equipados para lidar com eles”, diz Miguel Ángel Toro, do Instituto Tecnológico de Monterrey.
Os Estados Unidos, para onde o México destina 80% de suas exportações, reagiram à reforma afirmando que ela ameaça um relacionamento que depende da confiança dos investidores e pode representar “um grande risco” para a democracia. Inabalável, AMLO segue firme no presunçoso projeto de promover, com seu partido, a “quarta transformação” do México, expressão recorrente em seus longuíssimos discursos que coloca os feitos do governo no patamar de outros três momentos-chave da história: a guerra da independência, a separação entre Igreja e Estado e a revolução contra a ditadura de Porfirio Díaz. Na reta final do mandato, AMLO mexe os sombreiros para garantir um lugar ao sol nos livros de história do México. Corre o risco de sofrer uma insolação.
Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2024, edição nº 2911