Milei acirra briga com Lula e amplia crise diplomática na América do Sul
Presidente argentino empurra as relações bilaterais para um dos pontos mais baixos da história
Era véspera de uma semana movimentada para a política externa brasileira, com reuniões relevantes pela frente, mas todos os olhares no Planalto e no Itamaraty estavam voltados para o Balneário Camboriú, em Santa Catarina. Lá, no fim da tarde gelada e chuvosa de domingo 7, o presidente da Argentina, Javier Milei, postou-se ao lado de Jair Bolsonaro na versão brasileira da Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC, na sigla em inglês), fórum da chamada “direita dura” no qual já trocara amabilidades com Donald Trump em Washington, em fevereiro. Antes de pisar no Brasil, Milei havia subido mais alguns graus no termômetro do conflito latente com o presidente Lula, reiterando as ofensas de “corrupto”, “comunista” e “criminoso” feitas durante a campanha eleitoral argentina. Atacar Lula em território brasileiro, afirmou a VEJA um integrante da diplomacia nacional, seria ato “gravíssimo”, cabível de chamar de volta o embaixador em Buenos Aires, Julio Bitelli — algo inédito desde 1906, auge das tensões envolvendo a demarcação de fronteiras entre os dois países.
Para alívio geral, mesmo sendo recebido como popstar pela plateia de 3 000 pessoas sob o coro de “Lula, ladrão, seu lugar é na prisão”, o presidente argentino não mordeu a isca e evitou mencionar o petista no discurso contra “os males do socialismo”. “Poderia ter sido pior. Mas as relações entre os governos permanecem amargas”, afirma o diplomata. Por mais que tenha incomodado o governo o fato de, em sua primeira visita ao país, Milei ignorar Brasília — o governador catarinense, Jorginho Mello, pôs mais lenha na fogueira ao rejeitar o auxílio da Polícia Federal para fazer a segurança, decidindo pela Polícia Militar —, outro ato do portenho dias antes teve repercussão diplomática pior ainda: ele anunciou que não participaria da cúpula do Mercosul, na segunda-feira 8, no Paraguai. “O Planalto tratou a ausência como uma afronta clara, sinal de onde estão as prioridades dele”, disse a VEJA um alto funcionário do Itamaraty.
Milei foi o primeiro presidente da Argentina a rejeitar o convite da aliança sul-americana desde Fernando de la Rúa, em 2001. De la Rúa tinha justificativa: andava ocupado na época com uma onda de protestos em meio à gravíssima crise econômica que, pouco depois, levou à queda de seu governo. Já Milei deu desculpa esfarrapada — estava com a agenda “sobrecarregada”. “Ele usa uma linguagem virulenta inédita, como se não tivesse saído do palanque. E, na diplomacia, as palavras são armas”, diz Marcos Azambuja, ex-embaixador em Buenos Aires.
Visitar Camboriú sem passar por Brasília não foi a primeira deselegância cometida pelo presidente argentino. Ao circular como convidado vip do CPAC em Washington, ele não emitiu o menor gesto de atenção na direção do mais conhecido morador da cidade, Joe Biden. Voltou à carga em maio, na Espanha: além de ignorar o primeiro-ministro esquerdista Pedro Sánchez, ainda desencadeou uma crise diplomática ao repetir denúncias de corrupção contra a mulher dele, tudo durante um evento com Santiago Abascal, líder do partido de extrema direita Vox. “Ele parece estar mais preocupado com a pretensão de ser líder global desse setor ideológico do que em ser chefe de Estado”, criticou um oposicionista em Buenos Aires.
Em Santa Catarina, Milei assistiu com Bolsonaro à derrota do Brasil na Copa América e depois se reuniu a portas fechadas com o ex-presidente, Jorginho Mello, Eduardo Bolsonaro (o cérebro por trás da CPAC brasileira) e empresários catarinenses, como representantes do Grupo Tigre e XP. Foi um encontro envolto em mistério. “Nem os ajudantes de ordens entraram na sala”, disse um assessor do governador de Santa Catarina. Dali, Milei seguiu direto para o quarto do Mercure, hotel quatro estrelas na orla de Camboriú, de onde só saiu para ir embora. O pouco que se sabe da reunião foi divulgado por Eduardo em um vídeo constrangedor e inacreditável no X: a entrega, em portunhol sofrível, ao convidado, da medalha do Clube Bolsonaro, aquela que tem gravados os dizeres “Imorrível, imbrochável, incomível”, e que poderia ter também um “r”, de ridículo.
Na cúpula do Mercosul, em Assunção, a Argentina foi representada pela ministra das Relações Exteriores, Diana Mondino, que tem servido como uma espécie de para-choque em meio à turbulência com o Brasil. Diana voltou a defender que os integrantes do bloco possam negociar pactos comerciais bilaterais, posição também abraçada pelo presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, e a recomendar uma “injeção de adrenalina” para sacudir o grupo, mas agradou aos brasileiros ao considerar benéfica a eventual conclusão do acordo de livre comércio com a União Europeia, um ponto de honra do governo Lula.
A chanceler argentina já se encontrou inúmeras vezes com o colega brasileiro, Mauro Vieira.“Ela usa a boa relação com o ministro para tentar pôr panos quentes nos momentos de crise”, diz um funcionário do Itamaraty. Não é tarefa fácil, embora seja louvável. Em visita ao Brasil em abril, Diana levou uma carta de seu presidente propondo uma reunião bilateral com Lula. O brasileiro, no entanto, que adora alimentar a fervura ideológica, já declarou que Milei deve desculpas ao Brasil, porque “falou muita bobagem”. “Uma aproximação por iniciativa dos dois é caso perdido”, diz uma pessoa próxima a Vieira.
A ausência de Milei na cúpula machucou um já debilitado Mercosul. Mais de trinta anos depois da fundação, o que deveria ser um mercado comum não opera como tal. Enfrenta, além disso, cada vez mais divergências internas, complicadas agora pela adesão de mais um membro, a Bolívia — com quem Milei também comprou briga ao acusar o presidente, Luis Arce, de orquestrar um “falso golpe” para ganhar popularidade em meio a uma crise econômica. Além de encorpar o coro por acordos comerciais independentes, a Casa Rosada trava a criação de um subgrupo de trabalho no Mercosul para impulsionar a participação feminina no comércio regional e toma medidas para paralisar o Instituto de Políticas Públicas e Direitos Humanos do bloco, com sede em Buenos Aires.
No encontro em Assunção, a representação argentina ainda bloqueou o consenso para a redação da declaração final da cúpula, com embargo a temas como gênero e metas climáticas. “Apagar a palavra gênero de documentos só aumenta a violência que vivem mulheres e meninas todos os dias”, cutucou Lula em seu discurso no encontro, em que também destilou críticas à “experiência ultraliberal”. “Um dos dois pilares do Mercosul está balançando, o que põe em risco negócios com outros países e blocos, bem como o projeto de política externa lulista focado no Sul Global”, analisa Paulo Velasco, professor de relações internacionais da Uerj.
Fontes dos dois lados insistem que a indisposição diplomática ainda não contaminou a economia, campo em que o Brasil é o principal cliente dos argentinos, e eles, terceiros maiores compradores de produtos brasileiros. As relações nesse campo também esfriaram neste ano, devido sobretudo ao arrocho brutal nos seis meses de governo Milei, incluindo aí cortes drásticos de subsídios e benefícios. Isso vem contribuindo para elevar o nível da pobreza, que passou de 44% para 60% da população desde dezembro, e desacelerar a economia. O cenário resultou em queda de 37% nas exportações para a Argentina no primeiro semestre deste ano, em comparação com o mesmo período em 2023 (veja o quadro), com destaque para as vendas de soja. “Um canal aberto entre chefes de Estado pode facilitar o comércio bilateral. Uma briga, ao contrário, só traria prejuízos econômicos, caso fossem impostas medidas protecionistas como retaliação”, alerta Ignacio Labaqui, cientista político da Universidade Católica Argentina. Resumindo: ter os dois principais países da América do Sul batendo cabeça não é bom para ninguém.
Publicado em VEJA de 12 de julho de 2024, edição nº 2901