A imagem surrealista de um formigueiro de gente se equilibrando na neve para esperar a vez de cravar os pés no topo do Monte Everest, o mais alto do planeta, ganhou contornos assombrosos quando veio o balanço da brincadeira: onze pessoas perderam a vida na temporada de escalada de 2019, uma das mais mortais da história. O que a torna terrivelmente única é o fato de as mortes não terem sido fruto de avalanches ou terremotos, tão comuns naqueles picos, mas da irresponsabilidade generalizada. Nunca o governo do Nepal, país pelo qual se alcança a encosta sul do Everest (menos difícil e mais movimentada do que a que se acessa pela China), havia emitido tantas licenças a alpinistas — um número cerca de 10% superior ao habitual. A isso se somou um capricho dos deuses da meteorologia. As correntes de ar quente provenientes da Índia, que tornam o caminho rumo ao cume possível por até uma semana, sempre no mês de maio, dessa vez abriram uma modesta brecha de três dias.
Por essa conjunção de fatores, deu-se a superlotação fatal, situação em que turistas amargaram até doze horas na fila, de castigo na “zona da morte”. Ela é chamada assim por ser de frio extremo e ar rarefeito, suportável apenas com suprimento adequado de oxigênio. Na multidão, seria constatado depois, havia muitos amadores sem preparo para um desafio de tamanha envergadura. Veterano de Everest, o britânico Adrian Hayes atribuiu o excesso de novatos à “epidemia das redes sociais”: uma parcela dos que se habilitaram a vencer os 8 848 metros do monte queria mesmo ter uma boa selfie para postar. Tragédia consumada, o governo nepalês está para aprovar um pacote que exige dos aspirantes ao grande pico uma escalada de pelo menos 6 500 metros no currículo, além da comprovação de gastos com treinamento e equipamentos adequados. Um avanço, tardio que seja.
Publicado em VEJA de 1º de janeiro de 2020, edição nº 2667