Nascido para mudar
Archie, o bebê que mistura as origens negras de Meghan ao sangue azul de Harry, veio ao mundo reforçando o choque de modernidade na Casa de Windsor
It’s a boy! Embrulhadinho em uma manta creme, a carinha pouco aparecendo (menos ainda o cabelo… e nunca se especulou tanto sobre um cabelo), pesando 3,2 quilos, Archie Harrison Mountbatten-Windsor, o muito aguardado bebê de Harry e Meghan, os duques de Sussex, veio ao mundo às 5h26, quando clareava o dia 6 de maio. O primeiríssimo anúncio, começando exatamente pela informação de que era um menino, apareceu, muito modernamente, no Instagram do casal. Só horas depois foi divulgado de modo formal o nascimento, e o tradicional cavalete de apoio para o comunicado impresso foi montado no portão do Palácio de Buckingham, a casa da bisavó Elizabeth. Como prometeram implicitamente meses atrás, ao avisar que pretendiam tratar a chegada do primeiro filho como “assunto particular”, Harry e Meghan quebraram vários protocolos. Afinal, essa é mesmo a missão não escrita do mais heterodoxo dos casais na realeza britânica neste século XXI: romper barreiras, sem arranhar o encanto do conto de fadas.
Em vez da pose na porta do hospital, diante de uma multidão de fotógrafos e populares pacientemente na espera — o ritual que Kate e William repetiram à risca por três vezes, que Diana também cumpriu com seus dois filhos, e antes dela as mães e os pais da alta nobreza obedecem há quarenta anos —, Meghan e Harry apresentaram o filho ao mundo dois dias depois do nascimento no imponente St. George Hall, no Castelo de Windsor, a um pulinho de casa: eles moram em Frogmore Cottage, uma das residências do, digamos, condomínio. Sem aglomeração: Meghan, de vestido branco cinturado, sapato Louboutin salto 10, barriga ainda proeminente e rosto inchado do parto de anteontem, e Harry, de terno claro e carregando o bebê adormecido, falaram por alguns minutos diante de menos de dez repórteres, fotógrafos e cinegrafistas — entre eles, para muxoxo da imprensa inglesa, uma equipe da rede americana CBS. O pai acariciava seu embrulhinho (até então sem nome) com o polegar, a mãe alisava a touquinha de tricô, os dois riam sem parar e, ao irem embora, a mão dela cruzava as costas e pousava no ombro dele, em manifestações explícitas de carinho, pouco usuais entre as grossas paredes da residência real mais longamente ocupada em toda a Europa.
Como o duque e a duquesa de Sussex torcem o nariz para costumes “arcaicos” (a revelação é dos oniscientes tabloides), o anúncio do nome também foi no Instagram, junto com uma foto do bebê sendo mostrado, enrolado na mesma manta, na intimidade do castelo, à rainha e ao príncipe Philip, sob o olhar da avó materna, a americana descendente de escravos Doria Ragland. Antes disso, algumas horas depois do nascimento do bebê, Harry, de 34 anos, havia dado uma entrevista-relâmpago em cenário inusitado, na estrebaria do castelo, à frente de dois cavalos negros em suas baias. O local sinalizou que a família estava acomodada no Frogmore Cottage, um casarão reformado de alto a baixo, a 40 quilômetros de Londres. A pergunta que não queria calar era: o parto tinha sido lá?
Sem que os dois interessados dissessem uma palavra, os tabloides, sempre eles, foram revelando nas últimas semanas que 1) Meghan dispensara o ginecologista da família real e decidira fazer o parto em casa, com parteira, na presença da mãe e de Harry; 2) a decoração do quarto não era nem azul nem rosa; e 3) a babá viria dos Estados Unidos, a terra natal da mãe. Como o local do nascimento não foi divulgado, coube de novo aos tabloides esclarecer que a data-limite passara (o previsto era o fim de abril. Segundo quem? Os tabloides) e, no domingo 5, a equipe de segurança de Meghan e Harry, discretamente, os levou a um hospital londrino, onde ela teve o bebê — sim, com Doria e Harry junto — e, pouco depois, voltaram todos para casa. Sempre alertas, os repórteres buscavam desesperadamente descobrir se o parto foi induzido. A questão ainda não tem resposta.
A rigor, o pequeno Archie não é um royal, o apelido carinhoso dado pelos súditos ao alto escalão da realeza. O rebaixamento na hierarquia ocorre por obra e graça do rei George V, autor das regras nobiliárquicas que governam a Casa de Windsor — aliás, também responsável por britanizar o sobrenome da família, que antes atendia pelo excessivamente germânico Saxe-Coburg and Gotha. Em 1917, a I Guerra Mundial destronara vários monarcas e uma legião de príncipes, duques e condes vagava pela Europa sem uma coroa para chamar de sua. Preocupado em preservar os títulos da alta nobreza para poucos, uma regra básica de sobrevivência, George V ordenou que na Grã-Bretanha só seriam príncipes e princesas, com direito ao tratamento de Sua Alteza Real, a prole do monarca, a dos filhos — só dos filhos — dele e, por fim, o filho mais velho do filho mais velho do herdeiro do trono.
A primeira exceção à regra não tardou. Seu sucessor, George VI, só teve duas filhas, ambas — o.k. — princesas. Quando Elizabeth, a herdeira, ficou grávida, surgiu o problema: sendo mulher, seu bebê não seria Alteza Real. O rei mais que depressa mudou o decreto para ela, e só para ela, que viria a dar à luz três príncipes e uma princesa. Em 2012, Elizabeth fez a mesma coisa em relação à prole do herdeiro William, que tem hoje dois pequenos príncipes e uma princesinha em casa. Com Harry é diferente: ele é príncipe, mas seus descendentes, não. Archie pode vir a ser, quando a rainha enfim passar o bastão para Charles. Ele também tem direito a um título menor do pai ou, no mínimo, a um “master” ou “lorde” antes do nome. O anúncio no Instagram mostra que os pais não querem nada disso. Bastam Archie, tradicional nome inglês que mal aparecia nas casas de aposta (Alexander e Arthur eram os primeiros), Harrison, escolha mais americanizada que significa “filho de Harry”, e Mountbatten-Windsor, os nomes de família de Philip e Elizabeth.
Manter os filhos longe dos holofotes é preocupação constante tanto de Harry quanto de William, que viram a mãe-celebridade Diana ser seguida incessantemente por paparazzi e morrer de modo trágico, em um acidente de carro, tentando fugir deles. William, herdeiro de Charles, só mostra os pequenos George, 5 anos, Charlotte, 4, e Louis, 1, em ocasiões selecionadas. Mas a margem de manobra dos duques de Cambridge para burlar protocolos é muito menor que a de Harry, o príncipe estepe. Por isso, ele casou-se com Meghan, que é americana, divorciada, filha de mãe negra e pai branco (Thomas Markle, com quem ela não fala e que soube do nascimento do neto pelo noticiário) e ex-atriz de uma série de sucesso.
Esse casal que ninguém previa formar-se no coração da monarquia britânica, a mais rica, conhecida e popular do mundo, planta agora em seu meio o primeiro bebê inter-racial de raiz (a mãe da rainha Victoria teria algum sangue africano, mas nada que se compare à pele e aos dreadlocks da vovó Doria). Se Meghan já era um ícone, Archie virou símbolo de novos tempos nos redutos de imigrantes da Grã-Bretanha, que ainda é 67% branca, mas tem na comunidade multirracial a minoria que mais cresce no país. Ele terá dupla cidadania, britânica e americana, no que conta com a companhia de duas priminhas, filhas do neto mais velho de Elizabeth, Peter Phillip, com a canadense Autumn. E, se tudo der certo, será feminista, desejo manifestado por Meghan ainda na gravidez. Esse Archie promete.
Publicado em VEJA de 15 de maio de 2019, edição nº 2634
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